Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 5

PISCINÃO SEM RAMOS



Tenho aqui, no meu quintal, algumas plantinhas, herdadas gentilmente do igualmente gentil proprietário da casa, o Higino. Sujeito cuidadoso e habilodoso, ele deixou aqui canteiros, onde várias coisinhas florescem, para minha alegria, como alecrim, taioba, hortelã pimenta, boldo, cebolinha, e dois pés de pimenta dedo-de-moça dos quais venho cuidando, desde ainda brotinhos, que consegui com a minha colega e amiga Dona Rosa.
Há também, no fundo do quintal, um espaço onde plantas de maior porte formam uma "matinha": são flores, trepadeiras e... uma árvore.
Esta dita árvore, quando aqui cheguei, há dois anos, era ainda de porte médio, mas, sendo pouso de várias espécies de pássaros, observei e apoiei seu crescimento, alimentando-a e podando-a, carinhosamente.
Não sei que espécie é, e, na verdade, pouco me importa. Sei que é comum, aqui na região. É uma leguminosa, isso sei, pois libera grandes favas, que se espalham com o vento e brotam com absoluta facilidade, onde quer que caiam. Por todo o jardim, sempre há pequenos brotos dela.
Além disso, e como é comum às leguminosos - até onde as conheço, tem folhinhas pequenas e numerosas, como a conhecida "dinheiro-em-pencas". Essas folhinhas caem em grande quantidade, ao longo do ano e trouxeram polêmicas.
Antes de relatar a dita polêmica e seu final triste, pelo menos pra mim, devo dizer que a árvore, na medida em que crescia, passou a abrigar número cada vez maior de espécies de pássaros. Desde os inefáveis pardais, que passevam por seus galhos mais baixos, assim como as rolinhas, até os bem-te-vis e, a glória maior, sabiás.
Minhas manhãs de domingo dedico especialmente às plantas do quintal, acompanhado, atenta e brincalhonamente, pela Ciça, minha labradora. Ficamos por ali, ela catando pedaços de pau pra brincar, ou lutando com a água da mangueira, ou deitada languidamente tomando sol e me observando. Enquanto fazemos isso, os bem-te-vis, pardais, sabiás e até um surpreendente canário, povoam de cor e música nossos olhos e ouvidos.
Eis que um dia, minha mulher recebe a visita de uma vizinha, que mora imediatamente ao lado de nossa casa, e que possui, no quintal, uma piscina. E é essa a razão da polêmica e dessa crônica: a piscina da vizinha.
Muito raramente, escuto os tibuns piscinais dos vizinhos. Muito raramente mesmo. Sem exageros. Mas, percebo que a piscina é muito bem cuidada, sempre brilhando sua química azul, como posso ver do segundo andar aqui de casa.
A nossa árvore - ou talvez eu devesse dizer a MINHA árvores e já verão porque, crescida em tamanho, galhos e folhas, tornou-se um problema para a vizinha. E de certa forma, para as funcionárias aqui de casa também.
As funcionárias da casa, por dever de ofício, lavam a parte do quintal que é coberta por ardósias, todos os dias pela manhã. Para facilitar o trabalho, ao invés de varrer e depois lavar, habituaram-se a lavar, com a mangueira, já que há uma canaleta lateral que leva a sujeira , incluindo as folhas da minha árvore.
Mas, na medida em que ela crescia, a quantidade de folhinhas também crescia, evidentemente, e o grande volume passou a entupir a canaleta, trazendo um trabalho adicional de limpar, além do quintal, a canaleta, para garantir o escoamento da água. Digamos que elas não ficaram muito felizes com esse trabalho adicional. Não comentaram a bela sombram que a árvore agora fazia sobre elas, enquanto trabalhavam, não comentaram sobre o canto dos pássaros acalentando sua manhã, mas, comentaram sobre o "trabalhão" que as folhinhas davam.
A vizinha veio juntar-se ao bloco das reclamações: a árvore enchia sua piscina de folhinhas, favas e esporádicos gravetos.
Quando minha esposa comentou a reclamação das funcionárias, eu passei a limpar a canaleta, aos finais de semana, para que deixassem minha árvore em paz.
Quando minha esposa comentou a reclamação da vizinha eu disse simplesmente: ela que compre uma lona.
Mas, infelizmente, a vida não é tão simples assim. As funcionárias e a vizinha passaram a compor uma frente de críticas crescentes às inocentes folhinhas da minha árvore.
Há algumas semanas atrás, eu fui ao quintal, como de praxe, cuidar das plantas. Paramos, eu e Ciça, por alguns minutos a observar a nossa árvore (acho que a Ciça compartilhava do apreço por ela, ou aprendeu a compartilhar, após tantos domingos e feriados).
Ouvimos, quietos, o vento sibilar por entre os galhos, ouvimos o bem-te-vi que ali pousou, observamos o trabalho das rolinhas, do galho ao chão, do galho ao chão - catando gravetos e possíveis alimentos. Observamos também que o chão de ardósia do quintal estava coberto de folhinhas e favas, e que a canaleta estava novamente tomada pelo mesmo material.
Alguma coisa nos disse que dias tristes se aproximavam.
Dias depois, a vizinha, muito gentilmente, ofereceu os serviços de um jardineiro que ela mesmo contratara e que, sem ônus para nós, cortaria os galhos da minha árvore. Minha esposa concordou com a oferta, por boa vizinhança e porque, ela própria, já estava farta das pobres folhinhas e da reclamação das funcionárias. Me restava aceitar. Nenhum dos argumentos, da vizinha ou das funcionárias me convenceu. Por mim, manteria sugestão da lona, para uma, e a constatação da preguiça, para as outras. Mas, era gente demais pra encrencar, e, principalmente, a esposa já estava do "lado de lá".
Era sábado, e os enviados da vizinha vieram se desfazer dos galhos e das folhinhas da minha árvore, para alegria quase geral. Permaneci quieto, enfiado em meu escritório, e não quis nem olhar.
No dia seguinte, logo cedo, sai para o quintal e, na companhia solidária da Ciça, observei o estrago: apenas troncos nús. Alguns galhozinhos mais baixos foram poupados. A pequena goiabeira, que se insinuava de outro canteiro, também foi levada a praticamente zero, ficando só o pequeno tronco- minha esposa tinha pedido a eles esse servicinho extra, pensando nas folhas e frutos ainda futuros.
Desolados, eu e Ciça observamos aquilo, como se um furacão tivesse passado e destruido parte dos nossos domingos. Tanta água e tanto cuidado "ele" havia levado. Levou também a bela sombra que ela projetava e que ajudava a aliviar o forte calor da região. E, rapidamente, notamos que havia levado também os pássaros. Desde então, nossas manhãs de domingo estão mudas. Nada de bem-te-vis, nada dos sabiás. Muito esporadicamente, alguns pardais e rolinhas, já que somente os galhos mais baixos ficaram.
A vizinha devia estar feliz: nada de folhas. As funcionárias deviam estar felizes: menos trabalho. A piscina e a preguiça venceram a sombra e os pássaros.
Há certamente alguma lição aqui. Todo um pequeno "ecosistema" foi alterada para manter alguns trabalhando menos. A piscina, que raramente é usada, pode ser observada em seu azul químico, contrastando com a nudez desértica da minha árvore. Uma lona talvez seja mais cara, financeiramente, que um jardineiro. Mas, certamente, seria muito mais ecologicamente barata.
Ampliando essas relações de valores, compreendemos mais claramente nossas opções diante da natureza. É sempre mais fácil, para nós, extinguir parte dos seres vivos em nome do nosso conforto, por mais questionável que seja a nossa noção de conforto, por mais que esse conforto esconda tão somente a paralisia, a despreocupação e a falta de um olhar mais amplo sobre os pequenos mas preciosos fios da teia da vida natural.
Hoje é domingo, estive no quintal, cuidando das minhas coisinhas. Eu e a Ciça. O silêncio continua amargando essas manhãs. Eis que, então, uma leve brisa veio de não sei onde - talvez soprada pelo espírito de todas as árvores e pássaros, soprou, refrescando-me o calor do sol implacável de fevereiro. E me fez olhar pra minha árvore, coisa que, confesso, tenho evitado desde aquele trágico complô.
E o que vi me fez olhar pra Ciça. Ela me olhou também, com seus enormes lagos marrons e... guardamos para nós, o que vimos, irmanados, preparando nosso próprio contra-ataque. Os galhos cortados e nús da nossa árvore, não estão mais nús. Pequenos galhinhos verdes projetam-se, em profusão, do que antes parecia vazio e morto.
A árvore, silenciosamente, prepara sua vingança... Não contamos a ninguém, é claro. É assim, quando os homens e suas futilidades se esquecem da natureza: ela renasce, como fenix. Portanto, e diante disso, proclamo: esqueçam-se de todas as criaturas não-humanas deste planeta, filhos do concreto! É a única forma de garantir-lhes a vida...