Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

CONTOS: CARTOLAS MÁGICAS

DONA VITÓRIA


Ele fazia uma tarefa na escola. Ele fazia anotações em seu caderno encapado em plástico verde-claro. Ele fazia anotações em seu caderno encapado em verde-claro que ostentava na contracapa a letra do Hino Nacional Brasileiro.
Entretido, dedicado, ele, na escola: afinal estava em sala a D. Vitória. A D. Vitória poderia, quem sabe, ser conquistada pelo empenho e devoção do aluno.
Ele andava sempre com tudo certinho, tudo correto, limpo, lustroso, asseado. D. Vitória folheava-lhe o caderno todos os dias. Seus dedos divinais corriam aquelas páginas de adoração transformada em grafite e giz-de-cêra; salpicadas, deve-se acrescentar, por decalques de carros e aviões.
Ele tecia em letras sua paixão pueril, quando lhe veio a vontade. Uma vontade cada vez mais intensa, cada vez mais necessidade, cada vez mais precisão irremediável de ir ao banheiro. Ele precisava, urgentemente, “ir na casinha”.
Mas não podia ir naquela hora. Não podia ir naquele momento, porque a D. Vitória estava lhe perguntando alguma coisa. O quê? O que perguntava a D. Vitória? Sua concentração mudara-se para abaixo da cintura e ele não conseguia acompanhar a D. Vitória.
Ela perguntava sobre um feijãozinho e um algodão; perguntava sobre o feijãozinho no algodão, a D. Vitória. E parecia que aquilo era importante pra ela. Ele precisava responder. Ele tinha que responder. Mas, ele precisava demais “ir na casinha”.
Ele sabia a resposta que a D. Vitória queria. Ele vira o brotinho de feijão crescer, vira-o timidamente botar as folhinhas fora do ninho de algodão, como a refletir se valia a pena. A D. Vitória gostaria, sem dúvida, de saber disso tudo. Mas, ele precisava demais “ir na casinha”.
Ela era tão linda, tão linda e radiante, a D. Vitória. Usava meias cor-de-carne, com um friso atrás, lá delas. As meias de D. Vitória - tão linda, tão linda e cristalina! - tinham frisos atrás.
D. Vitória perguntava sobre o feijãozinho no algodão, mas ele não podia responder porque precisava demais “ir na casinha”. Um colega, lá do fundo da sala, queria responder sobre o feijãozinho. Mas ele não podia deixar, porque a D. Vitória pensaria que ele não sabia tudo o que ele sabia e que era tudo o que ela queria saber sobre o feijãozinho que morava no algodão. Ou pior ainda: ela poderia pensar que ele nem tinha feito a experiência do feijãozinho no algodão. E isso não era verdade de jeito nenhum.
Ele ficou lá, no meio da sala de aula, parado, tremendo, suando, com os olhos de cachorro viralata fixos em D. Vitória. Ela, então, chegou assim, bem pertinho dele. Ela veio assim, para bem pertinho dele e passou-lhe as mãos pelos cabelos.
Ela era grandona, grandona mesmo, a D. Vitória. Ele sentiu o hálito e o decote de D. Vitória invadindo carinhosamente o seu pânico. Ela disse assim, bem pertinho, que não tinha importância se ele não tinha feito a experiência do feijãozinho no algodão. E ele, e ele faltou... faltou, não: morreu. Ele morreu. Morreu porque já não podia dizer palavra, uma que fosse, de tanta vontade de “ir na casinha”.
Ele chorava. Como um rio mudo ele escorria tristemente em frente a D. Vitória e a todos os colegas. Seu olhar afogado estava nos pezinhos de D. Vitória. Ela era grandona, seu decote tinha o brilho de três galáxias, mas os pezinhos eram de boneca. E os sapatinhos também. Seu olhar estava nos pezinhos dela, seus sonhos no perfume do decote dela, assim, tão pertinho; e os músculos da boca doíam-lhe tanto, tanto...
Cagou-se todo. Ali mesmo, no meio da sala da aula, diante de D. Vitória e dos colegas. O cocô saia junto com os sons da mais aguda tragédia do menino apaixonado.
D. Vitória chamou as serventes da escola, que o levaram para o banheiro e o ajudaram a se lavar. Depois, ligaram para sua mãe. Que veio buscá-lo mais cedo.
Esta última, a mãe do menino, teve um trabalho sobre-humano para convencê-lo a ir à escola no dia seguinte.
Dia seguinte que nem ao menos era um sábado...




O MAGO


O menino jogava futebol de botão. Concentrado, tocava habilmente o beque - o beque central, o “center-half”, como dizia o avô. Aquele beque era seu orgulho. Uma antiga e enorme lente de relógio de bolso. Amarelada pelo tempo, com pequenas rachaduras nas bordas, certamente já inútil como lente de relógio, mas de enervante eficiência para os adversários à frente da área do “Estrelão”.
Um passe perfeito colocou em jogo o meio-campista de matéria plástica, nascido de muito trabalho com pedaços de plástico, fogo, fôrma de empadinha e lixa d’água. Ajeitou... mais um toque para a direita... e avisou, solene: “pra gol”. Sacudiu os ombros, posicionando melhor as mangas da camisa do Cruzeiro e... “agarrrrrrrrrrra o golllleeeeiiiiiirrrrrooo”! Droga. O maçudo goleiro do adversário, uma caixa de fósforos recheada com pedaços de chumbo e revestida com durex, era uma verdadeira muralha.
Deixou a casa do amigo amargando uma derrota por 5 a 2. Pudera, o cara era campeão da rua, dono do “estádio”; jogava com um time de acrílico que tinha o escudo do Galo em cima... Troço de primeira, caro pra caramba... Tinha que ser atleticano o campeão da rua, porra!?
Foi até o bar. O bar, muito chique: balcão de pedra, granito cor-de-areia, banquinhos com acento em courino laranja; um baleiro de seis bocas, giratório, que rangia divinamente como um carrossel. Um carrossel musical de açucares rodando, rodando, à espera de uma decisão do freguês enebriado. Depois, a tampa de lata na mão do português, o dinheiro amarrotado no balcão e o equivalente em balas crescendo sob o olhar esgazeado e a voz contando: “cinco... dez... quinze... e uma de “pinga”.
Lugar de delícias aquele bar. Além dos doces, o menino era também freguês do “pão molhado” e da porção de farofa colocada pelo balconista num quadrado de papel de embrulho e degustada aos “tapas na boca” na escadinha vermelha do bar.
O menino passava o fim de semana com os avós. Ele, o avô, bancário, do Banco da Lavoura: camisa “Volta ao Mundo”, gravatinha preta com prendedor prateado. Criava pássaros. Criava, especialmente, um curió afamado no bairro. Um curió que valia ouro. E o avô limpava-lhe a gaiola, balanceava cientificamente a ração, proteinizando-lhe o canto. Atentava também para o estado emocional de sua jóia, dispensando ao pássaro algumas horas diárias de boa e amigável prosa. Eram como um ourives e sua pepita rara.
A avó fazia sonhos recheados com doce de leite, contava casos de Pirapora e de Nova Era; e lia Agripa Vasconcelos. À noite, sentava-se em frente à TV e ao lado da pequena caixa acústica, encantadora obra de engenharia eletrônica do marido, para acompanhar a crescente degradação moral da televisão brasileira. Ela não escutava bem, mas tinha olhos muito críticos.
Tarde da noite, o menino assistia sozinho ao seriado “Combate” e pensava que o dia seguinte era um domingo. Pensava que domingo era dia de feira e que o homem estaria lá. Pensava que o homem, amanhã, lhe faria uma faca, logo cedo, na feira, como prometera o avô.
Então, domingo. Um domingo azul como os desejos infantis. Ele e o avô. A sacola de feira colorida.
O menino tentava, debilmente, controlar a ansiedade brincando de contar carros a caminho da feira. Passaram pelo bar, subiram a rua, passaram pela sapataria. O avô conversava, da portinha minúscula, com um homem lá dentro. O menino sentia o cheiro de couro e graxa que vinha do outro lado do balcão de madeira amarelo. E via, na rua, outras pessoas, com outras sacolas coloridas, também a caminho da feira. A feira logo ali, a poucos metros. E a conversa interminável do avô com aquela voz antiga que vinha do cheiro.
Distraiu-se observando a “joaninha” da polícia civil que parou em frente ao bar. O “polícia” que estava ao volante desceu, entrou no bar, voltando pouco depois com um maço vermelho de “Capri” nas mãos.
- “Passo na volta, então, “Seu” Geraldo”.
Caminhavam outra vez. Cada vez mais gente. O burburinho aumentando, o ar agitado. A feira estendia-se por mais de três quarteirões, no alto da rua. Lá, do final, na esquina onde havia um armarinho, podia-se ver o viaduto, com seus arcos feito costelas expostas de um animal gigantesco.
Onde será que o avô iria primeiro? Onde? Caminhava e aguardava, o coração aos pulos. Uma alegria quente ganhava o menino na medida em que adivinhava nos passos do avô a barraca do homem, daquele homem.
Sorria como só os meninos quando pararam em frente à barraca. Lá estava ele: o mago. O homem que respirava desejos e exalava realidade.
O mago deixou de lado a madeira que encantava para cumprimentá-los. O avô perguntou pela gaiola que encomendara. O avô encomendara uma gaiola nova para sua jóia canora. Encomendara uma gaiola ao mago da madeira; encomendara, portanto, uma gaiola mágica.
O homem, o mago da feira, disse : “Aqui está, mas o senhor me dê alguns minutos para os últimos retoques”. “Claro”, respondeu o avô. E o mago iniciou a conversa tradicional, o ritual de passagem de suas criações, como sempre iniciava: “Imagine o senhor que”... E prosseguiu na mesma linha: “Agora, imagine o senhor se”...
O menino só via as mãos do mago e os pequenos pedaços de madeira sendo meticulosamente acertados, lixados, encaixados. Como era possível? - a alma do menino se perguntava. As lasquinhas e a serragem ganhavam o vento leve do domingo azul, como sementes da capacidade criadora humana; como pirlimpimpim da fada Sininho, no filme de Walt Disney.
A conversa seguia. A madeira parecia chamar pelo curió: “Pois o senhor imagine que”... Ziiiit, ziiiiit, ziiiit... E o olhar terradonunca do menino.
Terminada a gaiola, o avô e o mago voltaram-se para ele. Era chegada a vez do seu desejo. Uma faca, uma faquinha de madeira. Risos, um afago nos cabelos... “É pra já, meu rapaz”!
O mago escolheu, tateando com seus dedos gepetos, o toco de madeira adequado ao desejo proclamado na feira pelo menino. E começou a trabalhar, desta vez em silêncio. Ziiit, ziiit, zap, zap, ziiit: a madeira. Nascia a faquinha, a faquinha de madeira. Ele era menino; meninos não podem andar com facas. Mas, em breve, teria uma faca, de madeira, feita ali na feira, pelo mago, é claro.
Então, aquele homem, aquele mago azul do domingo, entregou-lhe a faquinha, sorrindo. Ele, menino, não disse nada, naturalmente: seus olhos encarregaram-se de transmitir a magia do momento.
Saíram, menino e avô, pela feira. Nas mãos, a faca, a faquinha. E já brincava. O avô comprava legumes, frutas e jiló tipo extra para o curió, enquanto o menino matava piratas, padres e professoras: só pra ficar no pê, que era uma letra que tinha uma língua inteira. Voavam membros, agonizavam vilões aos montes. O instrumento mágico deslizava pelos ares mortais nas mãos do herói em calças curtas.
Em casa, guardou, com cuidados de louça, sua faquinha. Bem junto ao beque de lente e ao meio-campista de matéria plástica.
Passou algum tempo, o menino, sem voltar à casa dos avós. Preparava-se financeiramente para realizar um novo desejo. E quando finalmente voltou, numa sexta-feira sombria, - vazia de cheiros, ventos estranhos, nuvens pesadas, crianças em casa - , recebeu a notícia: o homem, o mago da feira, “o senhor imagine”, havia morrido.
Morreu? O que é isso... morreu? Como assim, morreu? O homem da feira?... Ele morreu?
As crianças têm profundas decepções com o sobrenatural.