Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

terça-feira, 8 de março de 2011

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 09

AS PESSOAS

Há pouco tempo atrás, postei aqui um pequeno texto sobre uma árvore, aqui de casa, que foi podada porque suas folhinhas cometiam o terrível crime de cair nas plácidas e clorídricas águas da piscina do vizinho.
Considerando a situação que nós impingimos ao planeta, isso me pareceu revelador, quanto às nossas opções, como seres humanos, diante desse mesmo planeta e também reveladora das nossas idiossincrasias.
Pois tenho motivos para acreditar que as folhas, simples folhas, tem um imenso potencial idiossincrático. Eis que outro episódio se impõe, apenas duas casas abaixo, na mesma rua, com as pobres folhas, que inocentemente caem sem pedir opinião, sem escolher freguês. Acredito profundamente que elas não caem de caso pensado.
Acontece que duas casas abaixo vive uma senhora e sua família. Em frente à sua casa, há uma árvore. Pequena árvore, ainda jovem e, agora, mutilada. Até o tronco, pobrezinha. E qual foi seu erro, qual foi o pecado que lhe trouxe a serra? Deixou cair suas folhas sobre a calçada da dita senhora.Irada, a senhora podou a árvore e ainda arrastou sua funcionária até a calçada e afirmou, peremptória: “Fulaninha, a partir de hoje, não admito uma única folha na minha calçada”
Para muitos, essa é uma frase e uma situação absolutamente “normal”, corriqueira, cotidiana e não merece uma crônica. Os senhores que, por acaso, vierem a ler essa pequena crônica, talvez não concordem comigo, ou irão se espantar com o que vou dizer: para mim, é uma frase no mínimo surpreendente.
Senão, vejamos... Na primeira casa à direita, a pouquíssimos metros da calçada imaculável dessa senhora, há uma árvore. Sobre a qual a senhora não tem a mínima autoridade ou jurisdição. E não me parece que tenha autoridade também sobre o vento, a chuva e que dirá sobre as estações do ano.
E há agravantes: em frente à minha casa, que é a segunda à direita, há duas enormes e frondosas árvores. E, indisciplinas, como eu, liberam alegremente suas folhas – suas muitas folhas, em profusão, pra todo lado.
As “minhas folhas” e as folhas da vizinha certamente chegarão à calçada da desfolhada senhora, para desespero dessa e possível desemprego de sua funcionária.
O que dizer disso tudo? Eu, digo: como as pessoas são curiosas, não é?
Fico também pensando: como é que uma pessoa, ou, o que é que nos leva a complicar tanto a vida? O que é que nos faz criadores de cavalos com chifres? Pra ser mais direto: o que é que leva alguém a se incomodar tanto com algumas folhas em sua calçada? O que é que leva alguém a se incomodar com sua calçada, meu Deus do céu!
Acordo de madrugada com uma idéia monstruosa: imaginem um lustroso cocô de cachorro na calçada dessa senhora? Imaginem a angústia, o pavor, o desespero. Imaginem o grito seco rasgando a imensidão do universo da senhora ao vislumbrar a modesta contribuição do cãozinho à sua paranóia? ...
Como as pessoas são curiosas... Mas, vamos aprofundar ainda mais essas esquisitices... E considerem que vivemos, os personagens dessa crônica, em uma cidade muito quente, que fica num vale, a 400 metros, em média, acima do nível do mar. Some calor com pressão atmosférica e adicione o fato de ventar pouco por ser um vale e encontrará o clima por aqui, no verão. Sabendo disso, continuemos...
Acontece que essa mesma senhora, e seu marido, ritualmente, todas as manhãs, tiram o carro da garagem, muito cedo e estacionam o carro... advinhem aonde? Vai lá, dá um chute aí, amigo.
Se você pensou que eles estacionam o carro na minha porta, sob as frondosas e folhentas árvores, você acertou. E porque tão cedo? Para que ninguém lhes “tome” a vaga, sob a sombra das árvores... Folhenta sombra das árvores....Certamente aprecia a sombra, mas, não sei o que fazem com as folhas que caem sobre o carro... folhas que o carro conduz a sua garagem e a sua santíssima calçada.
Outro dia flagrei o marido da senhora olhando rabugento para um pacato cidadão que havia parado o carro, antes dele, na sombra “dele”. Faltou muito pouco para que ele fosse além, para que desse o passo da agressão (agressão que cometeu silenciosamente contra a árvore que, provavelmente, ele mesmo plantou): olhava, bravo, e balançava a cabeça, em desaprovação àquele gesto “abusado” do pacato cidadão... cometido na MINHA porta.
Como são curiosas as pessoas... O ódio ás folhas não se estende ao ódio à sombra que elas produzem. E pior: não sei se eles têm a consciência de que não há sombra de árvore sem folhas de árvore. Seu grande número, sua detestada profusão é o berço da sombra. Ou ainda podemos pensar: folha na calçada dos outros é refresco... Quer a sombra, mas não as folhas.
Como são curiosas as pessoas... Podemos estender essa experiência, esse episódio, a muitas outras situações da vida, em que nós queremos as coisas, queremos sempre o bônus das coisas, mas, raramente queremos pagar o ônus das coisas.
Quantos de nós conhecemos pessoas assim, principalmente hoje em dia, que querem realizar seus desejos, mas não querem arcar com as dificuldades que possam advir disso. Nós, professores, especialmente, vemos jovens adultos e adolescentes que querem, querem e como querem. Anseiam pelos frutos, mas não querem os sacrifícios de plantar a árvore que gera esses frutos. Querem colher, mas não querem plantar. Quantos pais angustiados já atendi, ouvindo deles a frase: “não sei de onde esse garoto tirou isso!”
Bom... nós sabemos, não é? E isso não é de “hoje em dia”. Isso, são as pessoas, isso, somos nós. Hoje, ontem e, provavelmente, sempre.
Como são curiosas as pessoas... Ainda hoje, ao guardar meu carro na garagem, observei a profusão de folhas na calçada, na rua, no carro... Olhei bem pra elas, buscando entender o ódio da tal senhora, mas, só consegui a tradicional simpatia, a velha sensação de apreço. Veja folhas e leio árvores, e pra mim elas significam aconchego, leveza, força, esperança, eternidade. Pois então, que venham as folhas, se elas significam árvores.
Como são curiosas as pessoas...O que será que nos leva a atitudes assim ridículas? Frustração? Será que a dimensão titânica dos problemas da vida, por vezes massacrante, nos faz redimensionar o nada e transformá-lo num problema para voltar a ter a sensação de que podemos superar, podemos controlar, “resolver”? Será que a impotência nos faz enxergar tudo com esses olhos ranzinzas, esse dia-a-dia cinza?
Me vem à cabeça a personagem da rainha vermelha, de Lewis Carrol: cortem-lhe a cabeça, cortem-lhe a cabeça. Minha vizinha, a rainha vermelha... e sua pobre árvore, a pagar contas que não são suas...
Me vem também um verso de Renato Russo: “É preciso amar as pessoas, como se não houvesse amanhã” . E o verso me doeu, por vários motivos. Primeiro porque acho que realmente não há outra forma de amar as pessoas: acredito cada vez menos no amanhã, Renato...É preciso amar as pessoas, meu caro Renato, mas, confesso, que pra mim é mais fácil amar as folhas... Afinal, pra mim, as folhas fazem algum sentido...