Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A BLUSA AZUL

A BLUSA AZUL

Para Minha Avó Materna, Dona Nair
Para Dona Terezinha, com quem tive pouco tempo para conviver por aqui, neste planeta, mas que foi suficiente para construir um grande respeito e amizade

"Time is on my side (Yes, it is!)"
                          Rolling Stones

A velha senhora costurava sua vida ao tilintar sutil e frágil das agulhas de tricô. A sala vazia conspirava em móveis, louças e rendas, prenhe de personagens, plena de memórias.
Na cozinha, o silêncio do fogão dizia das tardes de sábado, ocupadas de filhos e netos e bifes e sonhos e desejos em espirais perfumadas inspirando a vizinhança e o mundo.
Na sala vazia e guardada em histórias ela tecia um inverno por vir. Como sempre fez, procurava agasalhar, aconchegar, proteger. Um arrepio, que percorreu-lhe a espinha dorsal da família, trouxe a certeza de que era inverno há décadas nas veias da vida.
A sombra de uma árvore centenária, sobre a qual os micos da praça procuravam sustento, rompeu a distância entre a sacada do apartamento e a rua, trazendo consigo a brisa ingênua da manhã, ainda virgem dos fatos. Os olhos insistem, o corpo resiste, os óculos são ajeitados seguidamente, espantando o cansaço, o frio e o frio. A cabeça curva-se ainda mais, as costas respondem, mas as agulhas retornam à dança dos nós.
Rostos povoam seus movimentos: ela é muitos. Filhos a se meter em más companhias, tombos de bicicleta, novos valores morais, velhos valores morais, casamentos, descasamentos, reconstruções, livros, amigas, amigos, maridos, minisaia, um tio alcoolista, a mulher do tio, um acidente de carro, a fazenda, os lucros, as perdas, reconstruções, mágoas, um certo natal, um anel de brilhantes, aquela música, um amor impossível, a família, as famílias, as mortes, os nascimentos dos netos, novas tecnologias, velhos remédios, um rosto sem nome, aquela fotografia, as viagens, as partidas, um que não voltou, e a saudade de um bicho de estimação.
À sombra da árvore onde os macaquinhos divertem crianças, recostada aos joelhos que esfriam à brisa da manhã, uma blusa toma forma. Assim como a Terra, é azul, segundo o oficial soviético. Uma blusa de lã azul vai entrar pra família, em breve.
Tanto passado passa pela lã da blusa futura. A velha senhora previne o frio por vir, nó a nó, enquanto a memória tece sua vida.
Um dia na praia, um botão de madrepérola, um sorriso de um moço no corso, uma revolução, uma prima brincando na chuva, uma surra, o colo do pai, uma carta, uma escola, duas professoras, um piano, um dia na capital, uma rosa entre as páginas de um caderno, uma fruta madura, uma receita de família, um corte no dedo, uma decepção.

A vida movia as agulhas de tricô na sala vazia. Mais um inverno por vir. A velha senhora observa modelos na revista alemã. O relógio de pêndulo ritma o silêncio. O apartamento levita: a velha senhora carrega a ampulheta do tempo na cestinha de costura.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

UM ABRAÇO NA LADEIRA TIRADENTES


"A vida não passa de uma oportunidade de encontro; só depois da morte se dá a junção; os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace"

Vitor Hugo





      Quando menino, o nome do meu pai, pra mim, era um "Mistério"... Olhava pra ele sempre a procurar...e não sabia o quê. Era uma sensação estranha, que por ser estranha, desconhecida em causa e consequência, flutuava do medo ao encantamento: se bem que em todo encanto há um sabor de medo.
       Pensando nisso, de encantos e medos, ou dos medos que existem nos encantos, ou ainda dos encantos que existem nos medos, penso, quase naturalmente no meu crescer. Mais especificamente, penso em como, na medida em que crescia meu pai crescia em mim. E, enquanto crescíamos - eu crescendo e ele crescendo em mim, o mistério se desnudava.
        Aí pelo final da adolescência, o mistério começa a se traduzir em palavras e ideias: eu admirava nele um olhar quase visionário, uma habilidade de enxergar nas entrelinhas, além da neblina das possibilidades, por sobre as serras gerais (para usar uma imagem que nos é cara). E eu pensava: como é que se consegue isso? Novamente, "mistério"...
         Já adulto, também pai, também colecionando já os ossos dos dias, também nas manhãs do Capão Verde, enquanto traduzíamos a entrada de cada pássaro na sinfonia do dia, à medida em que o sol se erguia de trás do morro.
     Hoje, lendo as crônicas de meu pai, o "mistério" se desfaz em toda sua grandeza e confirmo todas as suspeitas. O olhar curioso e sensível, o homem ilustrado construído sobre doces e sólidas raízes.
        Não há mistério: é o mistério da vida bem vivida, dos dias degustados, da sabedoria de quem sabe ler, na profundidade maior da leitura, que é aprender que nunca se leu tudo, que nunca de compreende tudo, que tudo está sempre por ser lido.
        Um homem, com a trajetória e a experiência de vida de meu pai, que ainda se deslumbra com as pequenas aranhas de edifício, com os pequenos  e imperceptíveis segredos de existir: é o "mistério". Um homem que percebe a passagem dos dias, que se adapta a eles para que ainda possa tirar o melhor desses mesmos dias, olha ainda com o olhar do menino da Ladeira Tiradentes. O homem experiente e culto que vê a vida com o deslumbre do menino que conhece, pela primeira vez, um sapato.
        Me acalentei no tapete mágico das palavras do meu pai. Sorri, chorei, refleti...me orgulhei.
         Eu também corri pela Ladeira Tiradentes, em Barbacena. Ainda trago na lembrança a casa do tio Vate. E a pastelaria Mexicana, onde aprendi a comer pastel com molho vinagrete.
           Eu que também conheci a Ladeira Tiradentes, conheço agora o Eduardo, a jogar bola de meia, rua abaixo...Dou-lhe um doce abraço e digo: que maravilhoso "mistério" é a vida, meu pai!

(Texto escrito para o prefácio do livro "Diário Reinventado", de Eduardo Cisalpino)