Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

sábado, 5 de dezembro de 2015

ANA MARIA

ANA MARIA



Só. Só, em casa, Ana Maria esperava. Vagava pelos corredores: o caminhar de Ana Maria deixa rastros no pó acumulado pelo assoalho de sua mesmice. O pano - muito branco, muito leve -, da camisola. E a mulher, percorrendo os vários cômodos de seu vazio.
Chovia. Ana Maria entre os clarões azuis, esperava. Correu as mãos pelo corpo: frio. Frio nos ossos e nos olhos da moça. Mas ela não se desesperava; esperava. Entretanto, os clarões azuis provocavam, por vezes, pequenos sobressaltos que deixavam escapar o medo em interjeições, desafiando-lhe a frieza do olhar.
Tomava chá com batidas do relógio na cozinha. Imensa cozinha, sob a luz das velas: a tempestade levara a energia. Os sons, chuva e relógio, a luz piscante das velas...
A cozinha transformara-se numa catedral de fórmica; e Ana Maria lembrou-se de um armário onde costumava esconder-se, quando criança. Na porta do armário havia um espelho. Ana Maria fechava-se no armário com uma lanterninha que a mãe lhe dera e ficava horas observando seu reflexo no espelho: sorria, olhava-se; emudecia, olhava-se; chorava, olhava-se; despida, olhava-se.
Ana Maria colecionava, distraidamente, migalhas do tempo sobre a mesa da cozinha, e observava seus dedos, sempre tão finos. Havia uma bruxa na infância que devorava criancinhas que tinham os dedos gordinhos.
“Houve um tempo em que os desejos eram como pele, Ana Maria”. A moça agora esforçava-se para lembrar canções; canções que ela costumava cantar no chuveiro, nos caminhos, para o vento. Canções que soube de cor. Canções de amor de tempos atrás... Há tempos atrás?
Saiu da cozinha levando um pequeno castiçal de louça, pintado à mão com motivos orientais, por uma amiga. Uma amiga... Como era seu nome? Uma amiga que adorava frases: andava com um caderninho anotando frases. Consumia, vorazmente, “Pensamentos do Dia” e “Momentos de Reflexão”, com os quais carimbava todos os acontecimentos. Uma amiga que rubricava as horas com palavras alheias e, muitas vezes, aleatórias. E era feliz.
Ana Maria foi até a janela da sala de estar. Que tinha cortinas de renda: as cortinas e a renda já tiveram uma história e um sentido em sua história. Ela entreabriu a cortina e sua esquecida história. A vidraça estava embaçada. Ela desenhou flores, bichinhos e pequenos objetos. Fazia rabiscos-apenas-rabiscos. um cheiro de grama molhada.
O jardim, além da janela, também parecia outro: outras sombras, outros mistérios, outras raízes. Não era mais o jardim onde a menina Ana Maria colhera copos-de-leite, admirada, guiando o corte da longa haste pelas orientações da mãe; sussurrantes orientações, cuidadosa operação, como se estivessem a cortar um cordão umbilical. Como se tivessem a consciência de que separavam a flor da existência da flor.
Não era mais o jardim onde a menina Ana Maria enterrara bulbos; o jardim onde enterrara um bichinho de estimação dentro de uma caixa de goiabada.
Ana Maria não era mais a menina Ana Maria. Ana Maria não era mais a mulher Ana Maria. Não era mais a mesma mulher de quando descobriu estar amando. Não era mais a mulher com os seios em cor, com os olhos chorando sabor, ansiosa, buscando agarrar-se ao orgasmo que insistia em fugir-lhe entre os dedos, sempre tão finos.
Um clarão. Azul. O jardim, a chuva, o som das gotas no vidro da janela; a cortina, a renda e Ana Maria, com o rosto entre as mãos.
Não era mais a menina que escreveu poemas, que guardou flores e embalagens de bombom entre as páginas do caderno adolescente. Não era mais a menina que aguardou, - coração fora do peito - , os passos do garoto que vinha tirá-la para dançar. A menina que registrou no diário, - perdido, distante, quase improvável diário - , o primeiro beijo
Não era mais a Ana Maria que marcou encontro, na lanchonete, com o tímido garoto dos óculos de tartaruga; que ligou para a amiga Marcinha contando todos os detalhes do encontro: os risos trocados, a amiga a perder o fôlego, aliviando as tensões e coroando com alegria a descoberta de um jeito mulher na menina Ana Maria.
Não era mais essa menina, não era mais essa mulher. Ana Maria não sabia mais quem é Ana Maria. Ana Maria que esperava.
Enroscou-se no sofá acariciando a camisola, acariciando o sofá, acariciando as coisas da sala de estar: coisas de Ana Maria que, um dia, deixou de ser.
Era querer. Ela era só querer. Queria outra vez Ana Maria nos dias que quis Ana Maria

E ele... ele haveria de chegar, como sempre chegava. Mais cedo ou mais tarde. E só, Ana Maria.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O TAMANHO DA RUA - HISTORINHA INFANTIL

O TAMANHO DA RUA




Outro dia estava navegando pela internet, brincando com aqueles programas que nos mostram a Terra vista do espaço, por um satélite. A gente pode “mergulhar” na Terra, com esses programas, aproximando cada vez mais. A gente entra na atmosfera, começa a ver o traçado dos continentes e oceanos, depois a gente escolha um lugar qualquer do planeta. Eu escolhi o meu país. Depois a gente aproxima mais e identifica a posição do nosso estado. Aí, já dá pra começar a localizar a nossa cidade.
Com a minha cidade já no alvo, comecei a ampliar mais a imagem. Vi os bairros, as avenidas e ruas ainda pequenas. Aproximei mais, mais e mais: e lá estava a minha rua. Eu podia reconhecer a minha casa, a casa dos vizinhos, o comércio que existe no fim da rua. A minha vontade era “mergulhar” mais ainda e poder ver as pessoas, os animais, e até os buracos no asfalto que a minha rua tem. Mas a ampliação da imagem já estava no limite. Então, fiquei ali, olhando a minha rua com os olhos do espaço. Como se fosse um E.T estudando o belo planetinha que risca de azul o sistema solar em sua órbita.
Deixei aquela imagem ali e fiquei observando, como quem vê pela primeira vez algo que já conhece em detalhes. Então, não sei porque, me deu uma vontade danada de sair de casa e fazer na minha imaginação, já que não havia um foguete à mão, a viagem ao contrário: fui para a rua, parei bem em frente ao meu portão, olhei para a rua toda. Depois, olhei para o céu, e voei: decolei em direção ao satélite que pouco antes me mostrava as imagens do meu planeta.
Olhando pra baixo, vi as ruas diminuindo, as pessoas virando formigas. Vi toda a beleza da geografia da região onde vivo; vi o meu país se formando lá embaixo, vi o oceano aparecendo, vi o meu continente, os outros oceanos, os outros continentes... até sair da atmosfera e poder ver o meu planeta. Fui até o satélite, sentei em uma de suas antenas – com cuidado pra não quebrar nada (acho que isso deve ser de um gringo qualquer)... E suspirei diante da beleza da minha Terra, do meu lugar nesse imenso universo.
Se você está aí rindo de mim, ou se perguntando como é que eu posso suspirar e respirar no espaço, já que sua professora de ciências disse que no espaço não tem ar, por que lá existe o vácuo eu te respondo: na imaginação, a gente pode tudo. Pra te provar isso, vou dizer que, sentado na antena do satélite, ainda tirei meu canivete do bolso e chupei uma laranja (colhida de uma laranjeira que imaginei nos painéis solares da estação espacial internacional), enquanto tentava identificar se aquele traçozinho, aquela pequena cicatriz que via na superfície do meu planeta era a Grande Muralha da China ( será?)
Então, olhei pra trás e contemplei a Lua, ali pertinho, os outros planetas do sistema solar (não olhei para o sol porque não tinha levado meus óculos escuros nem meu negativo de filme fotográfico). Vi bilhões de corpos celestes: estrelas, cometas, meteoros... pensei ter visto dois discos voadores e um buraco negro... Vi também a quantidade impressionante de lixo espacial em volta da Terra... Pensei maravilhado: eu estou lá na minha casa, na minha rua, na minha cidade, no meu país, no meu continente, no meu planeta... MAS... Sou mesmo é um habitante do universo! Meu lar é tão grande, tão grande, mas tão grande, que a gente acha que ele é infinito. Isso me fez sentir estranho: muito pequeno, por ser apenas um euzinho minúsculo no meio desse imenso universo... e muito grande, por ser um euzinho que pode vir a conhecer esse mesmo imenso universo.
Recolhi todas essas imagens pra dentro da minha cabeça e do meu coração (a imaginação tem um duplo lar em nós) e voltei o olhar pra minha rua. Aquele cachorrinho que passava tranquilamente, já não era o mesmo. O menino, meu vizinho, que me acenava da janela, já não era o mesmo. A minha rua, a minha rua simples e comum, como outros milhões de ruas pelo mundo, não era mais somente a minha rua: era um pedaço do universo. Era, na verdade, um universo dentro do universo. E esse universo tão mais próximo, era igualmente complexo e deslumbrante. E eu decidi explorá-lo.
Comecei minha exploração pelo mercadinho do “seu” Alfredo, que fica lá na ponta da rua, na esquina com a avenida que nos leva ao coração da cidade. Podemos com certeza dizer que ver o mercadinho do seu Alfredo é a alegria de chegar em casa, pra quem vem da cidade, e a pontinha de saudade de casa, quando se vai pra cidade. É a esquina do meu cotidiano, o mercadinho.
O mercadinho funciona em uma antiga garagem, convertida e ampliada para loja pelo dono que está morando nos EUA há dez anos – manda dinheiro de lá para os pais, que moram no andar de cima do mercadinho, e vivem da renda do imóvel. Tem verdura na porta, fresquinha, logo de manhã. Tem pão e leite. Tem aquela mortadela que eu adoro. Tem uma maquininha de balas. Tem uma caixa registradora antiga, mas que ainda funciona. Tem macarrão, farinha, feijão, arroz e carnes congeladas. Tem caderno, lanterna, sabão, limão, CD-Rom gravável, ração, alpiste, pimentão, leite condensado, batata chips. Tem também botina “rangideira” e fumo de rolo. Nos rótulos dos produtos tem: São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Buenos Aires e São João das Roças Lindas (que fica aqui pertinho).
E tem o seu Alfredo. Seu Alfredo é um mulato de olho verde, filho de um negro nordestino com uma loura francesa, neto de portugueses, índios, escravos e poetas. Seu Alfredo era o Brasil, era o mundo em forma de gente. Seu Alfredo falava mineirês (não sei se disse, mas moro em Minas Gerais, um “Mar de Morros” afogado em gente hospitaleira e gentil) com sotaque brasileiro, o que lembrava de longe o português. De vez em quando, recitava poetas franceses ou cordéis nordestinos: seu preferido era “A chegada de Lampião no Inferno”, que era muito engraçado.
Seu Alfredo nunca tinha viajado mais longe que alguns poucos quilômetros, mas trazia o mundo na alma, na pele. Sabia de Áfricas e Quilombos e Paris.
Entrou no mercadinho a Dona Rosa, pra comprar umas verduras pro almoço. Fui com ela, caminhando até sua casa, pra carregar a sacola. Dona Rosa já coleciona muita vida nos ombros, seus olhos são oásis de vida e quando ela olha pra gente um sorriso nasce em nossos corações.
Dona Rosa morava no outro extremo da rua, do lado oposto ao mercadinho, em uma casa antiga, mas bem conservada, com uma jardineira de margaridas na janela da frente. Dona Rosa, a primeira moradora da rua, diz que já viveu quase de tudo: nasceu em uma fazenda, cresceu cozinhando e lavando, casou na cidade, trabalhou em fábrica e em loja, viu a primeira locomotiva e viu também a primeira transmissão de televisão chegarem à sua cidade. Viu em preto-e-branco, o primeiro homem na Lua; e comprou o primeiro telefone celular da rua. Dona Rosa à vezes tem um tom de tristeza na voz: tem saudades do marido, que já se foi. Tem saudades dos filhos, que moram longe. Tem saudades dos netos que lhe mandam retratos e e-mails (Dona Rosa ganhou um computador do filho mais velho e aprendeu a usá-lo com o neto mais novo, que tem uma paciência danada com ela).
A casa de Dona Rosa tem muitos retratos e cheiro de memória.
Deixei as sacolas de verduras na casa de Dona Rosa e vi o Marquinhos, meu amigo, sentado no meio-fio, fazendo bolha de sabão. Tinha um tempão que eu não via alguém fazendo bolha de sabão. E fui lá, furar umas bolhas, é claro.
Marquinhos é um menino franzino, de óculos, com rosto cheio de sardas, muito branco, muito pálido. Morava na terceira casa a partir da minha, bem no meio da rua. A casa do Marquinhos, na verdade, era um pequeno condomínio: a casa original, de seus avós, havia sido dividida em três residências independentes. Em uma delas, morava o Marquinhos e seus pais, nas outras, seus dois tios com as famílias.
O pai de Marquinhos era engenheiro da empresa mais importante da cidade. Havia se formado há pouco tempo. Começara como um simples operário, mas, apesar de já ter família, batalhou muito, trabalhando durante o dia e estudando à noite, até se formar. Agora, ganhava muito melhor e tinha o carro mais novinho da rua.
Já o Marquinhos, sonhava em ser especialista em computadores. Passava quase todo seu tempo livre fechado no quarto, navegando na internet ou aprendendo a usar os programas mais complicados que o pai dele tinha.
Do outro lado da rua, também observando o Marquinhos estava o Carlão, sujeito meio esquisito, que não fazia nada da vida. Já com seus trinta anos, vivia ainda na casa da mãe e se vestia como um adolescente. O tempo todo de boné, bermuda e chinelo. Passava os dias pelos bares, jogando sinuca e bebendo. A mãe do Carlão era costureira, uma das melhores do bairro. Fazia de tudo, até vestido de noiva. Era ela quem sustentava o Carlão.
A casa do Carlão era mal cuidada, o portão estava velho e solto, caia toda hora. O telhado estava lotado de folhas, que caiam do ficos que havia no pequeno jardim, em frente à casa. A mãe dele não tinha tempo para manter a casa arrumada, e o Carlão parecia não se importar com isso. De vez em quando, olhava pra casa e dizia: “Amanhã eu vou arrumar isso aí”. Mas, amanhã nunca chegava.
Caminhando em direção à minha casa, olhava pra minha rua: casa dos Pereira... Casa da Mônica... Casa daquele vizinho que não conversava com ninguém... O terreno baldio... O predinho onde mora o Paulo, meu amigo... Eu caminhava e pensava em toda aquela gente. Gente de todo lugar, gente de todas as idades, gente que ia e vinha. Eu caminhava e pensava que ali naquela rua, não havia limite para histórias, para vontades, para desejos, para alegrias e tristezas. Não havia limite para o futuro, para mudanças que ainda poderiam ocorrer, com o passar dos anos.
Olhei para a rua novamente, mas agora com meus olhos da imaginação: e vi que minha rua não terminava na avenida que levava à cidade. Minha rua se ligava a uma estrada invisível que levava ao infinito. Minha rua era pequena, é verdade, mas era uma parte desse mundo, estava conectada ao planeta e corria muito além, serpenteando pelo universo, entre os mesmos satélites, estrelas, cometas, planetas, galáxias que eu imaginara ainda há pouco...

E assim, olhando pra lugar nenhum e para todos os lugares, cheguei a uma conclusão: não há nada que possa limitar as pessoas. Nem casas, nem ruas, nem cidades, nem mundos. Nosso único limite está no tamanho que queremos ter.

Murilo Cisalpino

domingo, 1 de novembro de 2015

ODISSEIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 12 - NA ROLETA DA VIDA

NA ROLETA DA VIDA

Estava no ônibus, outro dia, de Timóteo para Ipatinga. Final de uma tarde do final de outubro. Mais um dia, tudo como sempre, inclusive as situações especiais: de especial, havia o fato de estar indo substituir um colega, que havia sido internado. Mas isso aconteceu muitas vezes, ao longo do ano, trazendo a dupla sensação de alegria, por poder ajudar e preocupação, com o estado de saúde do colega. E de especial, havia também a impressão de entrar em dois lugares, quando entro em Ipatinga: a entrada de Ipatinga me lembra muito Brasília e sempre penso nisso, quando entro na cidade. É sempre como se estivesse entrando em duas partes de minha vida ao mesmo tempo e as memórias se misturam, como se lambesse um sorvete napolitano feito de emoções e histórias.
Era um dia de sentimentos especialmente envolvidos pela normalidade. O sol ainda brilhava às 18 horas, devido ao horário de verão. Mais uma normalidade com sabor especial. Normalmente extraordinário, esse dia.
O ônibus seguia seu trajeto normal, com seus barulhos normais e eu, como normalmente faço, me distraia com o ir e vir da cidade, lá fora. A moça de chapéu, o carro caríssimo, o garoto suicida correndo entre carros, a flor do shopping, o cheiro da usina: tudo como sempre. E eu pensava que nada dessa normalidade ocorreria outra vez, na história da humanidade. Pequenos e banais momentos únicos do universo passando pela janela.
De repente, não mais que de repente, escuto um pequeno gemido, longo e doído, dentro do ônibus. Procurei ver de onde vinha aquela ruído anormal que invadia a minha normalidade: era o trocador. Quando olhei, ele dava um impulso para a frente, levantava a cabeça, tentava segurar-se nas barras laterais e emitia outro gemido, ainda mais gutural e doloroso. Em seguida, suas mãos e braços se retorcerem, suas pernas se esticaram. Ele começou a cair da cadeira, totalmente retorcido, debatendo-se levemente, e salivava profusamente.
As pessoas, no ônibus, se espantaram, imediatamente gritaram para o motorista que o trocador estava passando mal, pedindo para parar. Algumas se aproximaram, na vontade de ajudar. Mas paravam diante do quadro: um homem, adulto, todo contorcido, debatendo-se e "babando". Não é fácil dar o próximo passo.
Sem hipocrisias: não é fácil dar o próximo passo. O que lhe vem à cabeça? "Será contagioso"? Por mais que você seja uma pessoa sempre disposta a ajudar, é isso que você pensa. E contem, ainda que seja por segundos, o próximo passo. Somado a outras dúvidas, por exemplo: "como eu posso ajudar, não sei o que está acontecendo", ou "não sei o que fazer, melhor ficar quieto". É natural, é humano, é compreensível.
Não era o caso de uma jovem senhora, que se aproximou, com ares de quem sabia o que fazia: "Deixa, deixa..." e tomou conta da situação. Não era o meu caso também, já tinha visto aquele quadro diversas vezes. Eu disse a ela: "Você precisa de ajuda"?
E fomos seguindo os procedimentos indicados: afrouxamos a gravatinha, a camisa, o cinto. Desfizemos o "bolinho" e ganhamos espaço. Levantamos o rapaz, que ameaçava cair da cadeira e o colocamos em uma posição mais segura e confortável. Os dentes não estavam cerrados e ele não mordia a língua. Retiramos objetos pessoais que pudessem se perder, quebrar ou feri-lo: óculos, telefone, carteira, etc. Alguém ligou para o SAMU pedindo uma ambulância.
O trocador se debateu por mais alguns segundos e começou a parar...Deu um profundo suspiro e depois permaneceu quieto, olhos fechados...e ofegava. O cansaço e a confusão mental seriam os próximos passos esperados.
Mais alguns minutos e ele começava a voltar: abriu os olhos. A moça falou com ele, perguntou o nome e a idade. O olhar era vazio, olhava mas não entendia o que via. O cansaço era profundo e quase mais consternador do que a convulsão. Ele estava exausto.
Ficamos ali, ao lado dele, por mais alguns minutos. Ele foi voltando. Respondeu o nome, mas ainda não sabia a idade nem onde estava. A primeira resposta à pergunta "quantos anos você tem"? foi "13 anos".
Foi nesse momento que pude tomar pé do que acontecia em volta. O ônibus estava parado no canto direito da avenida, logo em frente a um posto de gasolina, depois do shopping do vale. Eu estava a uns 500 metros do ponto onde desceria para pegar outro ônibus para a cidade nobre. Poderia descer e caminhar um pouco, mas não queria deixar a situação inacabada. Esperaria o SAMU. Algumas pessoas desciam, atrasadas para cuidar de suas vidas. Outras olhavam angustiadamente. Outras contavam o caso pelo telefone. Outras ainda simplesmente esperavam um outro ônibus para seguirem o trajeto e a vida.
O trocador falou alguma coisa, muito baixo e com grande esforço. Nos aproximamos: ele queria saber onde estava. Contamos o que acontecera. Ele pediu que ligássemos para alguém. O motorista, colega de trabalho, apareceu e disse que já estava ligando. Ele então tranquilizou-se novamente, recostou a cabeça na cadeira. E o SAMU chegou.
Duas pessoas desceram da ambulância e entraram no ônibus. Descrevemos todo o acontecido. Me lembro do motorista comentando com o pessoal do SAMU que nunca vira o trocador passar por algo parecido ou mesmo comentar sobre alguma doença que pudesse lhe causar isso.Com o apoio desses dois agentes do SAMU, o trocador desceu do ônibus e entrou na ambulância.
Nesse mesmo momento, outro ônibus estacionou logo atrás, pra pegar o pessoal. Fomos descendo, lentamente, e entrando no outro carro. Seguimos viagem. Calados. Desci no primeiro ponto, logo à frente e caminhei até o outro ponto, na avenida Brasil.
O dia morria, suavemente, dando lugar à noite. A agitação aumentava em carros e pessoas, devido ao horário. Gente indo pra casa, gente indo pra escola, rush, enfim.
Olhei o relógio do telefone: se o próximo ônibus não demorasse, não chegaria atrasado. E, por sorte, ele chegou logo. Embarquei. Sentei. Olhei pela janela: um carro de polícia, uma senhora com carrinho de bebê, um garoto se equilibrando perigosamente em uma bicicleta muito maior que ele, um supermercado lotado, um banco em greve. Tudo normal.
Pensei no trocador. Pensei em como aqueles poucos minutos, dentro do ônibus, poderiam mudar toda a vida dele. Aquilo certamente teria muitas consequências no trabalho e em sua rotina diária. Ele teria que buscar outra normalidade. E isso não é nada simples, pode ser muito complicado: mudar hábitos, se acostumar com novos situações, novos olhares das pessoas, novos julgamentos é uma verdadeira via crucis para a maioria de nós. Ninguém passa incólume por isso.
Nós nos acostumamos com as coisas, nós nos acostumamos com o que chamamos de nossas vidas e geralmente esquecemos a fragilidade absoluta disso tudo. Tudo é, em nossas vidas, natural e normalmente provisório, temporário. Somos criaturas predestinadas ao fim, desde o começo. Qualquer segundo é definitivo.
Devíamos beber a normalidade com a consciência de que tudo o que está não será mais. Nunca mais, Aquele segundo do olhar, do sorriso, do gesto, do vazio...aquele segundo foi e jamais será, novamente. Essa, a nossa normalidade: a convivência diária com o imponderável, com coisas definitivas que simplesmente não podemos prever ou controlar. Alguns preferem que deuses se ocupem dessa condição, dessa fragilidade, desse imprevisível, já que têm tantos planos para hoje, para amanhã, para o futuro com os netos.
Outros preferem não pensar nisso, outros preferem se dizer ocupados demais para pensar nisso. E simplesmente, vivemos.
Enfim, somos apenas isso: seres vivos, organismos que perambulam por aí seu prazo de validade, seja ele biológico, acidental, conjuntural, ou seja lá o que for. A única coisa que podemos escolher é como passaremos por esse período. Essa talvez a grande lição que devemos aprender e pensar nela, a cada segundo. Como se fosse normal, e que de fato é.
Desci no meu ponto na Carlos Chagas, fui dar minha aula, tomando o cuidado de lavar bem as mãos e os braços antes de cumprimentar as pessoas, antes de entrar em sala. E trabalhei, normalmente.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

HISTORINHAS DE APRENDER - AS MEIAS E OS MEIOS

Era uma vez duas meias.
Na verdade, mais que duas meias, eram um par.
Uma delas, azul. A outra, também.
Ambas, de um azul celeste...Ou quase isso.
Acontece que uma das meias- e aí pouco importa qual das meias seria, já que eram meia e meia; meias, as duas.
Voltemos então: acontece que uma das meias, era meio verde. Azul, sim, azul era a meia.
Mas também meio verde a meia era.
À outra meia, a que não era meio verde, mas totalmente azul, perguntavam: não acha meio estranho, meia? Sua companheira assim, meio azul, meio verde. Isso não é coisa de meia azul. Isso é meio verde, meia.
Assim como o povo, as meias falam. E por vezes as meias são meio preconceituosas, quando o assunto é meia... e cor de meia - cor é coisa que atormenta as meias - é meio estranho, eu sei, afinal, todas elas meias são . Mas, fazer o quê, se outro meio não há?
A já citada meia, meio confusa ficava; meio preocupada a meia, e se perguntava:
Uma meia, meio verde, e nem tão azul, menos meia azul seria?
Teríamos uma meia a menos, pensou, meio triste...
Mas, ora, que importa, sendo mais azul ou menos verde, mais verde ou menos azul, nada a menos haveria, nem uma única vírgula a menos, e as dúvidas foram ficando mais amenas.
Meia e meia, então, compraram uma tinta amarela, à meia, e tingiram-se, em singela cerimônia, só para os de seu meio.

E assim, fizeram um par a mais... e um problema a menos.

As meias sempre acham um meio de serem menos complicadas. Elas são feitas para o par. Não para o impar.