Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

POEMAS - PARA MANUEL DE BARROS

PARA MANUEL DE BARROS

(Murilo Cisalpino)


Nutro, há tempos, uma paixão visceral pela obra de Manuel de Barros. A intimidade com a palavra, o gosto pelo novo e pelo inusitado, a proximidade quase mágica com a criação e uma infindável rede de prazeres e de surpresas permanentes com que me deparo a cada vez que leio alguma coisa dele, mesmo que já a tenha lido uma centena de vezes, faz de Manuel de Barros, para mim, uma espécie de Eldorado da Poesia, onde uma fonte da juventude jorra signos eternamente renascidos.
Ousei, então, certo dia, escrever sobre seus textos, como criança que imita o pai andando sobre suas pegadas. Selecionei, e continuo selecionando, palavras, frases, trechos de seus poemas que mais me encantaram e encantam e tento imitá-los. Não há outra palavra: tento imitá-lo. E ao fazê-lo sinto-me como o canibal que devora seu inimigo em busca de suas virtudes.
Seguem abaixo alguns frutos desse banquete verbal que está concentrado, por enquanto no LIVRO SOBRE NADA e no RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA, de Manuel de Barros, evidentemente. Gostaria, um dia, de reunir esses meus textos sobre o título: “Livro Sobre o Livro Sobre Nada e Outros Que Tais”. Espero que o grande mestre me perdoe, mas a intenção tem sido a melhor possível.

OLHAR DE LAGARTO

Imagino o chão amarelo
pelas folhas das possíveis mangueiras
e entre elas, folhado,
um lagarto observa o crescer
das barbas do dia que,
em menino, espreguiçava-se
em finos raios de sol.
O avô, mais velho que o dia,
haveria de atravessar a ponte de prasempre
ao copular com fauna e flora.
As crianças filtravam o que era
natural e o que assim se fez
pelos sentidos mágicos da amplidão:
como levar lobisomens à feira.

PÉROLAS

Na noite da terra
os grilos imprestavam o silêncio.
O escuro, poluído de crís,
contaminava as almas
que por ali pesavam seu dia,
talvez ao embalo de redes,
talvez ao sabor de uma
cadeira de deriva.
Doutores conspícuos,
entidades coisais
e os de casa,
cintilavam idéias bobas e
pensamentos também
como quem arremessa
pérolas às trevas.


SAUDADES DO LAGO PARANOÁ

(Para Manuel de Barros)

Lá vem ela,
ainda é ponto
no discurso azul do céu.
E vem,
carregada pelo improvável,
sustentada pelos instintos,
com o bico a fazer
questão à existência.
Chega trazendo
seu silêncio branco,
brisa viva,
esticando um quase nada
com o qual toca a superfície
do mundo.
Sua existência é tênue,
quase fantástica,
como se carregasse duendes entre as penas.
As garças sopram a superfície da água
e, pra dizer que existem,
fingem uma breve refeição:
o pequeno peixe passa, então,
a fazer parte da magia.



“COMO UM LÁPIS NUMA PENÍNSULA”


Um dia, um homem que andava à-toa encontrou um lápis numa península. Península é uma língua de mundo bebendo a frescor das águas. Península é a sede da terra.
O homem, na península, com o lápis começou a traçar linhas à-toa, porque andava à-toa, e assim, brincando, foi criando o que não havia: desenhou no céu um pássaro que cantava silêncio; desenhou na água um barco movido a risadas; desenhou na terra um cheiro com jeito de planta e uma planta com cheiro de lembrança.
O homem, andando à-toa pelo mundo, com seu lápis foi traçando o que lhe vinha à cabeça. Criou coisas estranhas e aparentemente sem nenhuma utilidade, como um moinho movido a águas passadas, uma corda suspensa no nada, um caminho que só levava ao começo e um instrumento musical que tocava brisas.
Até que um dia, o homem que andava à-toa perdeu o lápis numa península. Península é um abraço de água no corpo do mundo. Península é a fome de carinho das águas.
E tudo que o homem que andava à-toa traçou à-toa pelo mundo afora com o lápis que achou e que perdeu numa península, escorregou devagar, bem devagar, de volta pra dentro do lápis.
O lápis, possivelmente, continua lá, na península, esperando alguém que o encontre, pra viajar outra vez por aí à-toa, traçando o que o desejo quiser.


Textos de Murilo Cisalpino baseados na obra de Manuel de Barros (Livro Sobre Nada)

P.s: os trechos entre aspas são cópias literais. O resto é “plágio”.

Brasília. Julho de 2000