Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

domingo, 29 de dezembro de 2013

BOM DESCANSO, AMIGO!



BOM DESCANSO, AMIGO

Sentamos aqui os dois, no sofá da sala, bebericando alguma coisa e relembrando todos os momentos que vivemos juntos. O papo é fácil, corre tranquilo, como é comum aos velhos amigos e irmãos. Olho pra ele, entre uma risada e outra, e reparo como ele envelheceu. Não parece cansado, mas em seus olhos pude perceber o quão intensa tem sido sua vida.
Na verdade, sendo filho de quem é, imagina-se, ou ainda, depreende-se essa intensidade, esse misto de fugacidade e permanência: tudo passa tão rápido, mas é para sempre. Deste segundo, para a eternidade. Um rabisco, um átimo, um piscar de olhos, um leve sorriso: tudo isso se inscreve nos ossos do universo.
Nem sempre percebemos essa dimensão de nossas vidas. Muitas vezes nos tornamos reféns dos grandes gestos, dos episódios monumentais, das grandes emoções; e não percebemos que a vida está acontecendo aqui mesmo, neste bebericar em que ficamos, no doce olhar que encontro no meu cãozinho ao lhe dar um petisco. Na lembrança de minha avó, quando frito um bife. No cheiro de dama da noite que vem com a brisa, neste momento.
Eternos, todos eles eternos, o imenso e o comum, irmanados pela singularidade da existência e, portanto, igualmente fundamentais e inesquecíveis. E por isso igualmente belos e caros.
Meu velho amigo brinca com suas próprias lembranças, e conta de tantos lugares que conheceu neste mundo, que eu provavelmente só verei por suas palavras, e eu me lembro de Louis Armstrong, enquanto ele conta.
E enquanto ele narra seus dias, me lembro dos meus dias com ele.
Com ele, conheci centenas de novas pessoas. Pessoas lutando, muitas vezes contra o cansaço, contra as dificuldades econômicas e muitas vezes deixando os filhos em casa e tendo que lidar com a saudade e a culpa. Muitas vezes carregando a esperança de uma família inteira. Pessoas em busca de si mesmas, com seus olhos famintos, brilhantes de vontade e energia. Gente que carrega o próprio futuro, dentro de olhos tão jovens.
Com ele degustei um vermelho-laranja, salpicado de dourados e prata, regato a vento no rosto, no céu desta cidade. Carrego aquela beleza, desde de então, nos meus olhos, feliz de saber que todo o firmamento pode caber, tantas vezes, dentro de mim.
Com ele chorei partidas e chegadas. Com ele me surpreendi com gestos terríveis dos seres humanos, e refletimos sobre a capacidade que temos de levar a maldade e o egoísmo ao mesmo extremo em que levamos a caridade e a solidariedade.
Aprendi como a irresponsabilidade e o deslumbramento dos outros pode afetar sua vida, mas que é preciso continuar fazendo o seu melhor, mesmo assim.
E relembrei, com ele, que você é ninguém, sem sua família e seus amigos.
Tantas manhãs, tantos dias... tantas vezes, o mesmo sol surgiu, como nunca surgirá mais, na história do universo. Abençoada rotina que os deuses nos permitem.
Tantas noites quentes, embaladas pelas conversas com a minha companheira, com meus cachorrinhos, tecendo a teia dos meus dias no aconchego de casa. Costurando o dia que foi, planejando os pontos e desenhos futuros: e nada melhor que fazer isso onde você se sente mais seguro e querido.
Relembro um dos nossos dias mais divertidos, juntos, e ele sorri, acrescentando detalhes dos quais já não me lembrava.
Guerras, mortes, nascimentos, heroísmo, hipocrisia, nobreza...vimos muita coisa juntos, amigo. O melhor e o pior da humanidade. E o que somos é apenas o que filtramos disso tudo. Simples assim: façam suas escolhas.
É hora de ele me deixar sozinho, com as escolhas que eu fiz. É hora de outro amigo chegar, para as escolhas que farei. E um dia nos sentaremos também, eu e este velho novo amigo que chega. Seu olhar de criança não me engana: ele também é um filho do tempo. E essa “gente” arrasta milênios entre os dedos das mãos.

Mas, hoje, é dia de agradecer. Obrigado, 2013. Levo você comigo, assim como espero ter deixado algumas lembranças em seus dias. Um dia voltaremos a nos ver no colo do pai, meu irmão.

domingo, 8 de dezembro de 2013

A MOÇA DOS ÓCULOS

A MOÇA DOS ÓCULOS

Da janela embaçada do ônibus ela observava a cidade espreguiçando sua manhã molhada. Carros levantavam pequenas esteiras de água, chiando em busca de seu destino. O velho encurvado sobre o fino paletó resmungava talvez pelo esquecimento do guarda-chuva.
Ela tira os olhos da rua por um momento e acompanha os dedos até a pequena sombrinha japonesa florida. “Tia Aparecida”? “Aniversário do ano passado”?
Volta a cabeça novamente para a janela. Fecha os olhos por um momento e recosta a fronte no vidro. Depois brinca com o vapor da janela, desenhando corações.
Tem os cabelos compridos e trançados, de um negro profundo como o asfalto. Os óculos de armação amarela estão colados, na haste direita, com fita adesiva transparente. Talvez ela esteja indo até uma ótica, no centro da cidade.
O solavanco do ônibus em mais um buraco faz com que os óculos saiam do lugar. A mão, rápida em tentar segurar-se no banco da frente, acerta a nuca do passageiro que olha e sorri: ela abaixa a cabeça e ajeita os óculos. Ele certamente não ouviu o murmúrio de desculpas.
Sua blusa de malha verde contorna os seios pequenos sem entretanto revelar seus detalhes. A gola está desfiando na frente. Talvez ela esteja indo a uma das liquidações, tão comuns nesta época, no centro da cidade.
Seu olhar agora se volta para o outdoor gigantesco onde um cidadão em seu terno elegante vende as virtudes improváveis de um banco do Estado. Ela observa o anúncio mas parece não vê-lo. Seus olhos desfocam-se em devaneios e sua alma parece flutuar sobre os prédios.
Ela talvez esteja pensando no trabalho, em como será seu dia na... loja? escritório? Escola ? supermercado?
Maria das Tranças será Maria da Glória ou Renata ou Roberta ou Letícia ou Cinara ou Lorena Leocádia ou Estela Maris ou Geralda Magela ou Marta Márcia Marina Melissa Morena dos Óculos Amarelos...
O ônibus entra na grande avenida e ela acorda do transe profundo. Um olhar para a quadra seguinte e procura a campainha. Com o ônibus ainda em movimento, ela levanta-se, ajeita a blusa e a saia, joga uma das tranças para trás, abraça a bolsinha de plástico e prepara a sombrinha primaveril. Chovia e chovia.

Com seu andar tímido e quase flutuante, como quem não quer ser vista jamais. Como quem quer desaparecer de si mesma, ela desce do ônibus e rapidamente se perde no labirinto urbano. Se perde do meu olhar, talvez para sempre, no vendaval de concreto e carne da cidade.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A BLUSA AZUL

A BLUSA AZUL

Para Minha Avó Materna, Dona Nair
Para Dona Terezinha, com quem tive pouco tempo para conviver por aqui, neste planeta, mas que foi suficiente para construir um grande respeito e amizade

"Time is on my side (Yes, it is!)"
                          Rolling Stones

A velha senhora costurava sua vida ao tilintar sutil e frágil das agulhas de tricô. A sala vazia conspirava em móveis, louças e rendas, prenhe de personagens, plena de memórias.
Na cozinha, o silêncio do fogão dizia das tardes de sábado, ocupadas de filhos e netos e bifes e sonhos e desejos em espirais perfumadas inspirando a vizinhança e o mundo.
Na sala vazia e guardada em histórias ela tecia um inverno por vir. Como sempre fez, procurava agasalhar, aconchegar, proteger. Um arrepio, que percorreu-lhe a espinha dorsal da família, trouxe a certeza de que era inverno há décadas nas veias da vida.
A sombra de uma árvore centenária, sobre a qual os micos da praça procuravam sustento, rompeu a distância entre a sacada do apartamento e a rua, trazendo consigo a brisa ingênua da manhã, ainda virgem dos fatos. Os olhos insistem, o corpo resiste, os óculos são ajeitados seguidamente, espantando o cansaço, o frio e o frio. A cabeça curva-se ainda mais, as costas respondem, mas as agulhas retornam à dança dos nós.
Rostos povoam seus movimentos: ela é muitos. Filhos a se meter em más companhias, tombos de bicicleta, novos valores morais, velhos valores morais, casamentos, descasamentos, reconstruções, livros, amigas, amigos, maridos, minisaia, um tio alcoolista, a mulher do tio, um acidente de carro, a fazenda, os lucros, as perdas, reconstruções, mágoas, um certo natal, um anel de brilhantes, aquela música, um amor impossível, a família, as famílias, as mortes, os nascimentos dos netos, novas tecnologias, velhos remédios, um rosto sem nome, aquela fotografia, as viagens, as partidas, um que não voltou, e a saudade de um bicho de estimação.
À sombra da árvore onde os macaquinhos divertem crianças, recostada aos joelhos que esfriam à brisa da manhã, uma blusa toma forma. Assim como a Terra, é azul, segundo o oficial soviético. Uma blusa de lã azul vai entrar pra família, em breve.
Tanto passado passa pela lã da blusa futura. A velha senhora previne o frio por vir, nó a nó, enquanto a memória tece sua vida.
Um dia na praia, um botão de madrepérola, um sorriso de um moço no corso, uma revolução, uma prima brincando na chuva, uma surra, o colo do pai, uma carta, uma escola, duas professoras, um piano, um dia na capital, uma rosa entre as páginas de um caderno, uma fruta madura, uma receita de família, um corte no dedo, uma decepção.

A vida movia as agulhas de tricô na sala vazia. Mais um inverno por vir. A velha senhora observa modelos na revista alemã. O relógio de pêndulo ritma o silêncio. O apartamento levita: a velha senhora carrega a ampulheta do tempo na cestinha de costura.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

UM ABRAÇO NA LADEIRA TIRADENTES


"A vida não passa de uma oportunidade de encontro; só depois da morte se dá a junção; os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace"

Vitor Hugo





      Quando menino, o nome do meu pai, pra mim, era um "Mistério"... Olhava pra ele sempre a procurar...e não sabia o quê. Era uma sensação estranha, que por ser estranha, desconhecida em causa e consequência, flutuava do medo ao encantamento: se bem que em todo encanto há um sabor de medo.
       Pensando nisso, de encantos e medos, ou dos medos que existem nos encantos, ou ainda dos encantos que existem nos medos, penso, quase naturalmente no meu crescer. Mais especificamente, penso em como, na medida em que crescia meu pai crescia em mim. E, enquanto crescíamos - eu crescendo e ele crescendo em mim, o mistério se desnudava.
        Aí pelo final da adolescência, o mistério começa a se traduzir em palavras e ideias: eu admirava nele um olhar quase visionário, uma habilidade de enxergar nas entrelinhas, além da neblina das possibilidades, por sobre as serras gerais (para usar uma imagem que nos é cara). E eu pensava: como é que se consegue isso? Novamente, "mistério"...
         Já adulto, também pai, também colecionando já os ossos dos dias, também nas manhãs do Capão Verde, enquanto traduzíamos a entrada de cada pássaro na sinfonia do dia, à medida em que o sol se erguia de trás do morro.
     Hoje, lendo as crônicas de meu pai, o "mistério" se desfaz em toda sua grandeza e confirmo todas as suspeitas. O olhar curioso e sensível, o homem ilustrado construído sobre doces e sólidas raízes.
        Não há mistério: é o mistério da vida bem vivida, dos dias degustados, da sabedoria de quem sabe ler, na profundidade maior da leitura, que é aprender que nunca se leu tudo, que nunca de compreende tudo, que tudo está sempre por ser lido.
        Um homem, com a trajetória e a experiência de vida de meu pai, que ainda se deslumbra com as pequenas aranhas de edifício, com os pequenos  e imperceptíveis segredos de existir: é o "mistério". Um homem que percebe a passagem dos dias, que se adapta a eles para que ainda possa tirar o melhor desses mesmos dias, olha ainda com o olhar do menino da Ladeira Tiradentes. O homem experiente e culto que vê a vida com o deslumbre do menino que conhece, pela primeira vez, um sapato.
        Me acalentei no tapete mágico das palavras do meu pai. Sorri, chorei, refleti...me orgulhei.
         Eu também corri pela Ladeira Tiradentes, em Barbacena. Ainda trago na lembrança a casa do tio Vate. E a pastelaria Mexicana, onde aprendi a comer pastel com molho vinagrete.
           Eu que também conheci a Ladeira Tiradentes, conheço agora o Eduardo, a jogar bola de meia, rua abaixo...Dou-lhe um doce abraço e digo: que maravilhoso "mistério" é a vida, meu pai!

(Texto escrito para o prefácio do livro "Diário Reinventado", de Eduardo Cisalpino)