Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 8

RUA HENRIQUE PASSINI

Até os meus nove anos, morávamos na rua Henrique Passini, entre Níquel e Oriente, na Serra. Era uma casa pequena, charmosa, aquela arquitetura típica dos anos 40/50, no Brasil.
Tenho pouca memória do interior da casa, mas, dos exteriores, tanto da frente quanto dos fundos, a lembrança é muito nítida. Especialmente da cozinha e do quintal. Nesse quintal, bem ao fundo, havia um pequeno barracão.
Na verdade, a casa era especialmente o quintal, onde a maior parte das brincadeiras acontecia. Brincávamos muito, entre nós, os irmãos. Sempre havia também algum dos vizinhos mais freqüentes em casa, nessas memórias, como o Ênio, o garoto que morava na casa ao lado. Meu amigo. O pai do Ênio montava aeromodelos, e isso era muito impressionante pra mim, na época.
Brincávamos de casinha, eu e minhas irmãs. Eu, o “pai”, “saia pra trabalhar”, enquanto elas ficavam tomando conta das “crianças” (as bonecas). Havia também a comidinha, feita com folhas e galhos e, algumas vezes, com grãos de arroz e feijão emprestados por minha mãe.
Me lembro de “trabalhar” construindo estradas, em um pequeno monte de areia, junto à parede da cozinha. Os tratores e caminhões eram caixas de papelão ou pedaços de madeira. Brinquedos “de verdade” eram poucos, nessa época, mas, não faziam a menor falta. Mas não deixavam de ser desejados e impactantes. Talvez por isso a memória dos brinquedos “de verdade” seja tão forte: um avião de plástico que meu irmão Rodrigo ganhou, uma diligência, do tipo faroeste, com cavalos brancos, que eu ganhei.
Essas minhas lembranças são, em geral, esparsas, tênues, às vezes fugidias. Adormecidas, acordam com um cheiro, uma música, um rosto, uma palavra, uma cena.
Há apenas uma presença total, nessas memórias. Uma presença que está em todas as minhas memórias desse período: o olhar de minha mãe. Sempre que tirava os olhos da brincadeira, encontrava o olhar de minha mãe.
Mais que vigilante, minha mãe participava dessas brincadeiras. Direta ou indiretamente. Por vezes contribuía com biscoitos ou bolinhos de verdade pra nossa “casinha”. Outras vezes tinha um papel qualquer, como a “Dona da Venda”, onde fazíamos “compras”. Organizadíssimas compras: até “dinheiro” tinha.
Certa vez, ganhamos um jogo que tinha embalagens de produtos e tudo mais, um verdadeiro “mini-supermercado”. Rendeu meses e meses de brincadeiras.
E minha mãe tolerava pacientemente e divertidamente ver sua cozinha ou sua sala transformadas em supermercado.
Essa presença tão forte e definitiva que tenho de minha mãe, ligada à casa, à tranqüilidade e suave funcionamento do nosso lar, me deixou uma herança profunda: adoro minha casa, adoro ficar em casa. E mais, adoro fazer coisas de casa, ganhar coisas para a casa. Se você me der de presente um pano de prato lindinho, vou ficar feliz demais, acredite.
E adoro cozinhar, principalmente. Tenho memória de ajudar minha mãe na cozinha, com pequenas tarefas, como descascar batatas, ou picar chuchu, desde muito criança. Fazia e faço isso ainda com muito gosto. Minha mãe cozinha com amor, por isso, aprendi que cozinhar para alguém é uma declaração de amor, de afeto.
Ver as pessoas comerem, com prazer e descontração, alguma coisa que eu preparei, me dá uma grande alegria. É realmente um prazer. Vejo esse prazer quando minha mãe está na cozinha. E cozinha para seis filhos. E sabe todos os pratos preferidos. Ainda hoje, quando vou em casa, ela me recebe com meu prato preferido: carne moída com quiabo.
Alguém certa vez disse, com precisão absoluta, que minha mãe tem seis filhos únicos.
Uma das mais doces lembranças que tenho da minha infância, uma das lembranças que mais traduzem o que foi a minha infância e, portanto, boa parte do que eu sou, é a imagem de minha mãe, eu e meus irmãos, sentados nos degraus da escadinha que dava da cozinha para o quintal da casa da rua Henrique Passini, comendo, absolutamente deliciados e encantados, “capitão”.
“Capitão” era um bolinho, feito à mão , ou melhor, feito com as mãos. Fazia-se o prato, normalmente, com arroz, feijão, carne – de preferência picada, ou moída, e o que mais viesse, um pouco de farinha, para dar liga, pegava-se um punhado com a mão, amassando, gentilmente, pra formar um bolinho e, pronto.
Comer com a mão era algo indescritivelmente encantador, pra nós. E proibido – meu pai não gostava dessa prática, dizia que era coisa de índio – o que tornava a aventura ainda mais mágica. Portanto, só era feita quando ele não estava. Era algo só nosso, dos filhos com a mãe.
Nunca comi nada melhor na minha vida. E acho que nunca comerei. É um sabor que pertence à minha alma, não somente ao meu paladar. Assim como a carne moída com quiabo, da Dona Neuza.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 7

UM RIO MANSO

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia

Quando procuro na alma uma imagem para meus avós maternos, vô Dago e vó Santa, vejo um pequeno rio, de águas calmas, tão calmas que mal se vê seu escoar, como se esse movimento fosse tão definitivo, tão próximo do eterno, que ele simplesmente escoa, sem pressa e quase em silêncio. Conversa baixinho, pra poder ouvir o mundo melhor.
Suas margens são protegidas por um abraço de mata, ao longo de todo curso. Imagino até uma canoa, na qual navego, como um cúmplice.
Acho que esta foi a lição fundamental que aprendi com eles, Dago e Santa: a vida é certeza. Essa certeza que constrói a calma. O rio calmo atravessa todos os terrenos. Mas nunca se perde de si mesmo. É sempre o mesmo rio calmo. Quando chega ao mar, ele se torna o mar, mas, por vezes, quando se sabe sentir, podemos ver uma manhã doce, dominada por uma leve brisa, por marolas ritmadas, e esse conjunto, somado aos pássaros, conspira uma canção ao universo: é o rio dos meus avós, ensinando sua calma ao mar.
Outro dia, estava em Porto Seguro, de papo com o Atlântico. E pude também sorrir para meus avós um sorriso de agradecimento e saudade.
Quando criança, costumava passar dias na casa dos meus avós, na Floresta. Guardo muitas lembranças dessas estadas na casa da Floresta. Não me lembro quantos anos tinha eu, mas, imagino que tivesse aí pelos 10 anos de idade, mais ou menos
Essas lembranças incluem, por exemplo: as peladas na rua; um corte no braço provocado por uma giletada; um garoto estranho, que diziam que era “doido” – autor da giletada; os jogos de bente altas com meu tio Rodolfo e os funcionários da serralheria, em frente à casa; o cheiro de solda que vinha da serralheria; um curió, e alguns canários; a varanda da casa onde havia uma famosa mesa de vidro, cujo tampo foi quebrado por meu pai, acidentalmente, num jogo de truco; um barril cheio de água, no pequeno quintal; a feira, aos domingos; o bar onde comia “pão molhado” e porções de farofa; uma lambreta; um bilboquê; colcha de fuxico.
Foi também nessa casa que tive a permissão par ver, pela primeira vez, ao seriado “Combate”. Passava tarde, para a minha idade, aí pelas 22 horas, se não me engano. Na TV Itacolomi. Em casa, não me deixavam ver. Mas, na casa dos meus avós, tanto insisti, que deixaram.
Fiquei plantado em frente à TV, preto e branco, claro. Esperando a hora de ver “Combate”. A propaganda dos cobertores Paraíba passou, mas eu não fui dormir na hora que mamãe mandava. Continuei esperando. Pra ver “Combate”.
Esperei tanto que dormi. Acordei com a musiquinha que encerrava a programação da TV Itacolomi. Poucos anos mais tarde, a mesma série passou novamente, era um grande sucesso, e eu pude ver, toda ela. E adorei. Já não me parecia tão tarde, já não era uma grande aventura proibida, mas, gostei assim mesmo. “Combate” era melhor que o “Vigilante Rodoviário”. Melhor até que “Flash Gordon” e que “Nacional Kid”.
Outro dia, baixei um episódio de “Combate” via Youtube. Dá dó, perto do que se pode fazer hoje, mas, é uma gostosa parte de mim. Curioso... acho que os seriados antigos, talvez por carência tecnológica, carregam um conteúdo humano maior. Há tempo para as pessoas, onde os efeitos são menos impressionantes.
Bom, acho que é assim em tudo, na vida.
Minha infância é pequena e calma. Comparando com as séries de TV, ela não tem grandes efeitos, grandes eventos. Mas tem suas jóias insuperáveis, inestimáveis, como o rio manso dos meus avós, as vitórias pessoais, como ver “Combate” ou vencer um campeonato de amarrar sapatos, na escola. E me pertence, como o rio da aldeia de Álvaro de Campos.

terça-feira, 25 de maio de 2010

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 6

À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS

Brasileiros somos, e, em época de copa do mundo, é quase inevitável refletirmos sobre o tema. Não sei se em função do clima que toma conta do país, não sei se por paixão mesmo, andei relendo alguns dos meus preciosos exemplares da coleção lançada há alguns anos pela Companhia das Letras, organizada por Ruy Castro, que reúne as crônicas de Nelson Rodrigues, publicadas em O Globo, entre a década de 50 e 70. Entre eles, estão as crônicas de futebol de Nelson Rodrigues, em dois volumes: À Sombra das Chuteiras Imortais e A Pátria de Chuteiras.
Não sei se os amigos que por acaso estão a ler este texto, já tiveram a oportunidade de ler Nelson Rodrigues, em qualquer de suas facetas. Não sei, especialmente, se algum de vocês já teve a oportunidade de ler as crônicas de futebol de Nelson Rodrigues. Caso não tenham lido, só tenho uma coisa a dizer: leiam.
Você, que torceu o nariz quando eu disse para ler crônicas de futebol, é quem deve, prioritariamente, lê-las. Em sua memória certamente afloraram tristezas monumentais relacionadas ao tema, como certos "comentaristas" que andam por aí, como certos "programas" de esportes que andam por aí. Mas, garanto-lhe que as crônicas de Nelson Rodrigues pertencem a um outro momento da história das crônicas esportivas no Brasil e, diria eu, no mundo. Considero como literatura de alta qualidade. Leio e releio essas crônicas - aliás, leio e releio Nelson Rodrigues. Pra mim, é um gênio da literatura. Ninguém sabe usar adjetivos ou criar personagens como Nelson Rodrigues.
Pois nesse ler e reler dos deliciosos textos de Nelson Rodrigues, fiz brotarem dos vãos da memória algumas lembranças pessoais relacionadas ao tema futebol, e, principalmente, relacionadas às copas do mundo.
Antes de mais nada é preciso dizer que as copas do mundo são, para nós brasileiros, como as canções do Roberto Carlos. Marcam nossas vidas. Todos nós temos vínculos afetivos importantes com as copas do mundo. Quanto se conversa sobre copa do mundo, é batata que alguém diga: onde você assistiu à Copa de 2006? Ou melhor: com quem você assistiu à copa de 2006. Dificilmente alguém se esquece de onde e com quem estava durante a copa do mundo. Claro que a coisa complica um pouco quando você coleciona um número razoavelmente significativo de copas do mundo. Acontecem de quatro em quatro anos, portanto, se você se lembra de cinco ou seis, já é um veterano, pra não dizer que está inequivocamente envelhecendo.
No ano em que nasci, o Brasil tornou-se campeão mundial de futebol pela primeira vez. Segundo Nelson Rodrigues, quando nos tornamos campeões mundiais, começamos a deixar pra trás o nosso complexo de cachorros vira-latas e passamos a olhar o mundo de cabeça erguida.
Pois vejam que nem essa copa do mundo, a de 1958, na Suécia, passou em branco na minha vida. Era eu um bebê campeão mundial.
Aos quatro anos, em 1962, me tornaria um legítimo e inquestionável bicampeão mundial. Nada mal para quem ainda molhava as calças...
Mas, de verdade, nada me lembro da copa do mundo de 1962. Nem a mais remota lembrança. Nem um único fiozinho de memória.
A partir daí é que o futebol começaria a nascer pra mim. A minha primeira e significativa memória futebolistica me remete aos Estádio Independência, em Belo Horizonte, assistindo a um jogo do Atlético Mineiro contra o Santos. Sou tão antigo que minhas memórias são anteriores ao Mineirão...
Mas o que fazia eu num jogo do Atlético? Explico. Meu pai é atleticano. Bem, no mundo do futebol, cedo a gente aprende a perdoar esses defeitos nas pessoas...
Não sei que idade tinha eu, mas, acredito que devia ter aí pela casa dos cinco, seis anos. Se consideramos isso como correto, estaríamos entre 1963, 64. Já éramos bicampeões, portanto. E o Santos que eu via, era o poderoso Santos de Pelé, Coutinho, Edu, Pepe e companhia.
As minhas lembranças desse jogo se resumem à multidão, aos vendedores ambulantes, ao calor e a uma briga generalizada dos jogadores em campo. Qualquer dia desses vou pesquisar esse jogo e confirmar se essa briga existiu mesmo ou se é fantasia da memória infantil.
Deduzimos que não foi nesse momento que o futebol nasceu pra mim. A briga foi mais marcante que o jogo... E com Pelé em campo!
As minhas primeiras memórias que incluem mais substância futebolística, me remetem às aulas de educação física no Santo Tomás, minha escola. Me lembro de conversas animadas com os colegas sobre como iríamos vencer, me lembro da emoção dos pequenos torneios que disputávamos. O futebol começava a ser futebol.
E a memória definitiva do nascimento do futebol, me encontra na rua Henrique Passini, entre Corinto e Canápolis, no bairro da Serra, em BH. Era ali, no meio da rua, de uma rua calçada com paralelepípedos, que o futebol tomou pra mim todas as suas cores e formas. As táticas, técnicas e as opiniões pessoais sobre o jogo e quem jogava já estão presentes.
Essas peladas aconteciam em frente à casa de um garota chamado Aloísio, cujo pai era conselheiro do Atlético Mineiro. Aloísio era o craque dessas peladas. Eu, me esforçava e acreditava muito em mim, mesmo que as opiniões dos colegas talvez não seguissem na mesma direção.
Minha certeza de que era um craque me leva à memória de uma ida com minha mãe a uma loja de material esportivo, no centro da cidade, para comprar uma camisa de verdade, para usar nas peladas. Não era de nenhum clube. Era uma camisa verde, com gola branca, para qual comprei inclusive um número: 9. Esse número, branco, maravilhoso, definitivo, marca, pra mim, o nascimento do futebol.
Com uma ansiedade absoluta, aguardei toda a eternidade que minha mãe demorou para costurar o número na camisa. E fui para a pelada, naquele dia, paramentado, ostentando meu número 9: eu era um centro-avante. Não me lembro de nenhum grande craque que me marcou nessa época. As peladas, por si só, foram marcantes. Nessa época descobri também que não era um craque.
Era sempre um dos últimos a ser escolhido: caso clássico da relação entre o perna-de-pau e as peladas de rua.
Entra em campo, nessa mesma época, minha primeira lembrança sobre as copas do mundo. Estamos em 1966, e a seleção brasileira foi à Inglaterra disputar a copa do mundo, em busca do tricampeonato. Um nome salta das sombras da memória: Tostão. Um garoto de Belo Horizonte, que havia começado nas divisões de base do América e agora iluminava o país e a cidade com seu talento. Ele e seus companheiros, como Dirceu Lopes e Natal. Nascia em mim a admiração pelos grandes craques, junto com a opção por um time de futebol: eu decidi que iria torcer pro Cruzeiro. O Cruzeiro de 66 era sinônimo de vitória e de talento. Ganhava até do Santos de Pelé. Meu primeiro grande jogo foi Cruzeiro e Santos, pela final do Taça Brasil, o equivalente, na época, ao campeonato brasileiro. Ganhamos. Seis a dois. No Santos de Pelé... Pai, me perdoa, não dava pra torcer pra outro time, nessa época, na minha idade!...

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 5

PISCINÃO SEM RAMOS



Tenho aqui, no meu quintal, algumas plantinhas, herdadas gentilmente do igualmente gentil proprietário da casa, o Higino. Sujeito cuidadoso e habilodoso, ele deixou aqui canteiros, onde várias coisinhas florescem, para minha alegria, como alecrim, taioba, hortelã pimenta, boldo, cebolinha, e dois pés de pimenta dedo-de-moça dos quais venho cuidando, desde ainda brotinhos, que consegui com a minha colega e amiga Dona Rosa.
Há também, no fundo do quintal, um espaço onde plantas de maior porte formam uma "matinha": são flores, trepadeiras e... uma árvore.
Esta dita árvore, quando aqui cheguei, há dois anos, era ainda de porte médio, mas, sendo pouso de várias espécies de pássaros, observei e apoiei seu crescimento, alimentando-a e podando-a, carinhosamente.
Não sei que espécie é, e, na verdade, pouco me importa. Sei que é comum, aqui na região. É uma leguminosa, isso sei, pois libera grandes favas, que se espalham com o vento e brotam com absoluta facilidade, onde quer que caiam. Por todo o jardim, sempre há pequenos brotos dela.
Além disso, e como é comum às leguminosos - até onde as conheço, tem folhinhas pequenas e numerosas, como a conhecida "dinheiro-em-pencas". Essas folhinhas caem em grande quantidade, ao longo do ano e trouxeram polêmicas.
Antes de relatar a dita polêmica e seu final triste, pelo menos pra mim, devo dizer que a árvore, na medida em que crescia, passou a abrigar número cada vez maior de espécies de pássaros. Desde os inefáveis pardais, que passevam por seus galhos mais baixos, assim como as rolinhas, até os bem-te-vis e, a glória maior, sabiás.
Minhas manhãs de domingo dedico especialmente às plantas do quintal, acompanhado, atenta e brincalhonamente, pela Ciça, minha labradora. Ficamos por ali, ela catando pedaços de pau pra brincar, ou lutando com a água da mangueira, ou deitada languidamente tomando sol e me observando. Enquanto fazemos isso, os bem-te-vis, pardais, sabiás e até um surpreendente canário, povoam de cor e música nossos olhos e ouvidos.
Eis que um dia, minha mulher recebe a visita de uma vizinha, que mora imediatamente ao lado de nossa casa, e que possui, no quintal, uma piscina. E é essa a razão da polêmica e dessa crônica: a piscina da vizinha.
Muito raramente, escuto os tibuns piscinais dos vizinhos. Muito raramente mesmo. Sem exageros. Mas, percebo que a piscina é muito bem cuidada, sempre brilhando sua química azul, como posso ver do segundo andar aqui de casa.
A nossa árvore - ou talvez eu devesse dizer a MINHA árvores e já verão porque, crescida em tamanho, galhos e folhas, tornou-se um problema para a vizinha. E de certa forma, para as funcionárias aqui de casa também.
As funcionárias da casa, por dever de ofício, lavam a parte do quintal que é coberta por ardósias, todos os dias pela manhã. Para facilitar o trabalho, ao invés de varrer e depois lavar, habituaram-se a lavar, com a mangueira, já que há uma canaleta lateral que leva a sujeira , incluindo as folhas da minha árvore.
Mas, na medida em que ela crescia, a quantidade de folhinhas também crescia, evidentemente, e o grande volume passou a entupir a canaleta, trazendo um trabalho adicional de limpar, além do quintal, a canaleta, para garantir o escoamento da água. Digamos que elas não ficaram muito felizes com esse trabalho adicional. Não comentaram a bela sombram que a árvore agora fazia sobre elas, enquanto trabalhavam, não comentaram sobre o canto dos pássaros acalentando sua manhã, mas, comentaram sobre o "trabalhão" que as folhinhas davam.
A vizinha veio juntar-se ao bloco das reclamações: a árvore enchia sua piscina de folhinhas, favas e esporádicos gravetos.
Quando minha esposa comentou a reclamação das funcionárias, eu passei a limpar a canaleta, aos finais de semana, para que deixassem minha árvore em paz.
Quando minha esposa comentou a reclamação da vizinha eu disse simplesmente: ela que compre uma lona.
Mas, infelizmente, a vida não é tão simples assim. As funcionárias e a vizinha passaram a compor uma frente de críticas crescentes às inocentes folhinhas da minha árvore.
Há algumas semanas atrás, eu fui ao quintal, como de praxe, cuidar das plantas. Paramos, eu e Ciça, por alguns minutos a observar a nossa árvore (acho que a Ciça compartilhava do apreço por ela, ou aprendeu a compartilhar, após tantos domingos e feriados).
Ouvimos, quietos, o vento sibilar por entre os galhos, ouvimos o bem-te-vi que ali pousou, observamos o trabalho das rolinhas, do galho ao chão, do galho ao chão - catando gravetos e possíveis alimentos. Observamos também que o chão de ardósia do quintal estava coberto de folhinhas e favas, e que a canaleta estava novamente tomada pelo mesmo material.
Alguma coisa nos disse que dias tristes se aproximavam.
Dias depois, a vizinha, muito gentilmente, ofereceu os serviços de um jardineiro que ela mesmo contratara e que, sem ônus para nós, cortaria os galhos da minha árvore. Minha esposa concordou com a oferta, por boa vizinhança e porque, ela própria, já estava farta das pobres folhinhas e da reclamação das funcionárias. Me restava aceitar. Nenhum dos argumentos, da vizinha ou das funcionárias me convenceu. Por mim, manteria sugestão da lona, para uma, e a constatação da preguiça, para as outras. Mas, era gente demais pra encrencar, e, principalmente, a esposa já estava do "lado de lá".
Era sábado, e os enviados da vizinha vieram se desfazer dos galhos e das folhinhas da minha árvore, para alegria quase geral. Permaneci quieto, enfiado em meu escritório, e não quis nem olhar.
No dia seguinte, logo cedo, sai para o quintal e, na companhia solidária da Ciça, observei o estrago: apenas troncos nús. Alguns galhozinhos mais baixos foram poupados. A pequena goiabeira, que se insinuava de outro canteiro, também foi levada a praticamente zero, ficando só o pequeno tronco- minha esposa tinha pedido a eles esse servicinho extra, pensando nas folhas e frutos ainda futuros.
Desolados, eu e Ciça observamos aquilo, como se um furacão tivesse passado e destruido parte dos nossos domingos. Tanta água e tanto cuidado "ele" havia levado. Levou também a bela sombra que ela projetava e que ajudava a aliviar o forte calor da região. E, rapidamente, notamos que havia levado também os pássaros. Desde então, nossas manhãs de domingo estão mudas. Nada de bem-te-vis, nada dos sabiás. Muito esporadicamente, alguns pardais e rolinhas, já que somente os galhos mais baixos ficaram.
A vizinha devia estar feliz: nada de folhas. As funcionárias deviam estar felizes: menos trabalho. A piscina e a preguiça venceram a sombra e os pássaros.
Há certamente alguma lição aqui. Todo um pequeno "ecosistema" foi alterada para manter alguns trabalhando menos. A piscina, que raramente é usada, pode ser observada em seu azul químico, contrastando com a nudez desértica da minha árvore. Uma lona talvez seja mais cara, financeiramente, que um jardineiro. Mas, certamente, seria muito mais ecologicamente barata.
Ampliando essas relações de valores, compreendemos mais claramente nossas opções diante da natureza. É sempre mais fácil, para nós, extinguir parte dos seres vivos em nome do nosso conforto, por mais questionável que seja a nossa noção de conforto, por mais que esse conforto esconda tão somente a paralisia, a despreocupação e a falta de um olhar mais amplo sobre os pequenos mas preciosos fios da teia da vida natural.
Hoje é domingo, estive no quintal, cuidando das minhas coisinhas. Eu e a Ciça. O silêncio continua amargando essas manhãs. Eis que, então, uma leve brisa veio de não sei onde - talvez soprada pelo espírito de todas as árvores e pássaros, soprou, refrescando-me o calor do sol implacável de fevereiro. E me fez olhar pra minha árvore, coisa que, confesso, tenho evitado desde aquele trágico complô.
E o que vi me fez olhar pra Ciça. Ela me olhou também, com seus enormes lagos marrons e... guardamos para nós, o que vimos, irmanados, preparando nosso próprio contra-ataque. Os galhos cortados e nús da nossa árvore, não estão mais nús. Pequenos galhinhos verdes projetam-se, em profusão, do que antes parecia vazio e morto.
A árvore, silenciosamente, prepara sua vingança... Não contamos a ninguém, é claro. É assim, quando os homens e suas futilidades se esquecem da natureza: ela renasce, como fenix. Portanto, e diante disso, proclamo: esqueçam-se de todas as criaturas não-humanas deste planeta, filhos do concreto! É a única forma de garantir-lhes a vida...

domingo, 17 de janeiro de 2010

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 4

DAS REVOLUÇÕES


Resisto muito em falar sobre política. Pelo menos sobre o formato tradicional de política, ou seja: partidos, ideologias, e que tais. Não acho muito produtivo isso, pra dizer o mínimo. Acho que, em geral, "política é o fim", como diria Caetano Veloso.
Porém, como o próprio Caetano em sua prática, acredito que todos os nossos gestos, que incluam os outros, são, necessariamente, políticos. Escrever aqui, é política. Falar aos meus alunos sobre as minhas reflexões sobre o mundo, é política. Portanto, a política e a cidadania, pra mim, são filhas de uma mesma mãe, ou, por outra, são a mesma pessoa.
Meu desapego pela política tradicional, partidária, vem do fato de não ver nela, como muitos veem, alguma coisa de transformadora, não reconheço as ideologias, pelo menos as que conheço - ou como conheço, como algo que efetivamente contribua para o crescimento da humanidade.
As ideologias, os sistemas políticos, as estruturas que estão, que estiveram, ou que almejam o poder, pra mim, desejam apenas isso: o poder. Não "o bem e o progresso da humanidade", como propagandeiam.
Sou historiador, por formação, e conheço bem o apreço que a história tem pelo conceito de revolução. Para os historiadores, revolução só pode existir a partir do momento em que ocorra uma transformação estrutural da sociedade, e não somente uma mudança no governo.
Pois é a partir daí que eu gostaria de discutir um pouco de política, ou da concepção que tenho de política.
Outro dia, estava ouvindo um debate sobre política, e, me aparece um cidadão, que se auto-entitulava, "de esquerda": confesso que, geralmente, quando escuto isso, já me preparo para uma enxurrada de baboseiras decoradas com toneladas de burrice e encimadas, como uma cereja de bolo, por raciocínios simplórios. Se isso me classifica como "de direita", vá lá: não me incomodo com rótulos ou com o que é politicamente correto. Em tempo: acho os politicamente corretos um bando de fascistas. Para manutenção da minha autonomia como pensador e cidadão - mesmo que considerem o livre exercício do pensar como alguma coisa "pequeno-burguesa" , apresento frase de São Tomás de Aquino: "O que pensam de mim, não é da minha conta".
Voltando ao assunto. Nosso amigo, "de esquerda", dizia, literalmente, o seguinte: a direita acusa a esquerda de ser violenta, de pregar a violência, na medida em que prega a tomada do poder pelos proletários e toda aquela chorumela marxista que até meu cachorro conhece. (Ah, os furúnculos de Marx! Até hoje inflamando (não resisti ao trocadilho, desculpem!) a humanidade).
Porém, dizia, ele, a esquerda não pode negar a violência, ela é parte do processo. Se as revoluções levam necessariamente à violência, a permanência também, ou seja, conservar um determinado "status quo" exige também o uso da força.
Donde se conclui que, a violência é legítima e pode ser usada, sem vergonhas, pela esquerda, já que ela é inerente à própria organização política da sociedade.
Estendendo esse mesmo raciocício, imaginamos que, uma vez no poder, a esquerda passa a usar da violência para se manter no poder, o que é plenamente justificável.
Então, sem querer cair nas garras do sofisma, podemos também dizer que, uma vez no poder, a esquerda age como uma força conservadora. Estendendo mais ainda o raciocínio: podemos concluir, por essa linha que, qualquer que seja a ideologia no poder, ela é, necessariamente conservadora, e vai usar da violência para conter qualquer força política que ameace esse poder.
Toda luta política, ao longo da história, seria nada mais do que uma luta entre os que pretendem conservar o poder e aqueles que querem o poder para, a partir daí, conservá-lo.
Podemos ver sob essa ótica, por exemplo, a Convenção Nacional, durante a Revolução Francesa. O jornalista Marrat, um dos ícones da Convenção, publicou uma oração, que se tornou muito popular na França da época, na qual ele chamava a guilhotina de "Santa Guilhotina", por suprimir os contra-revolucionários, os "inimigos da Revolução". Era, portanto, a guilhotina, um instrumento usado para a conservação do poder. Pouco tempo depois, a mesma guilhotina era usada pela Gironda para eliminar os jacobinos, durante o Diretório. Mais alguns anos, e a Santa Aliança perseguiria os liberais por toda a Europa. Contra o "Terror" jacobino, o "Terror Branco" da Santa Aliança. Seja branco, vermelho ou cor-de-rosa, sempre o terror contra o terror- tudo, claro, em nome do "progresso da humanidade".
Podemos ver sob essa ótica a polícia política da União Soviética, os campos de concentração na Sibéria, do período Stalin. Ou o "paredón" castrista. Ou as prisões do Estado Novo, ou os "Porões da Ditadura" militar, ou a "Luta Armada", no Brasil.
Chegamos, então, aonde eu queria chegar, e retomo o início desta crônica: não gosto de política. E aí está o porque.
Acredito que a luta política tradicional de fato não considera a humanidade. Nós, cidadãos submetidos aos ímpetos revolucionários somos senão os instrumentos de acesso ao poder. A partir daí, somos somente, os que seguem a revolução ou os que vão se opor a ela, os que vão usufruir do poder ou os que serão perseguidos por ele. Somente o poder vence as lutas políticas e por ele elas acontecem.
Na minha opinião, nenhuma das ideologias que eu conheço propõe o "bem da humanidade" ou tem, efetivamente, um compromisso com a humanidade. O compromisso é com o poder. O objetivo é o poder, sob a alegação de que somente assim se pode mudar as relações dentro da sociedade, tornando-as mais justas - o que não é verdade, já que haverão, sempre, os excluídos.
Diante disso, acho que a verdadeira revolução, que levará a melhorias significativas nas relações sociais, nas relações humanas, nas condições de vida de toda e qualquer criatura humana, passa além da política e remete a uma política dos valores humanos.
Passa pela compreensão de que nenhuma criatura humana é igual à outra, e de que a proposta de uma sociedade igualitária, não é a proposta de uma sociedade onde todos sejam iguais, mas onde todos possam exercer, com dignidade, as suas diferenças.
Uma sociedade onde o poder esteja a serviço de cada um de nós, não a seu próprio serviço, não a serviço de quem dele usufrui, mas de quem o constituiu, para quem e a partir de quem ele se justifica.
O poder que oprime, seja quem for, em nome do que for, não se justifica, já que o poder existe para a sociedade e não o contrário. As leis, braço essencial do poder, deveriam ser as leis que preservam as diferenças, protegem os indivíduos na sua individualidade, salvando-os da tirania da maioria e do poder.
E, por favor, não venham me dizer que estou defendendo o "liberou geral", uma sociedade sem leis e sem normas, onde tudo é permitido. Claro que não. Proponho uma sociedade onde nenhuma forma de ameaça ao indivíduo exista. O único coletivo que existe é o indivíduo, o indivíduo pleno, capaz de compreender-se no outro.
Essa a minha utopia. Essa a minha revolução. E, certamente, não a enxergo em nenhuma das ideologias que a história produziu até agora.
E não me venham também falar de Lula: Lula é essência do conservadorismo político, a essência da luta pelo poder, não pelas pessoas. Se o fato de um modesto trabalhador chegar ao poder fosse garantia de grandes mudanças na humanidade, Stalin teria sido fantástico!
Finalizando, é sempre bom lembrar que tudo pode piorar. Dilma pode vir substituir Lula lá. Talvez então eu venha a viver o impensável: terei saudades do Grande Idiota.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 3

LEMBRANÇAS DE UM ABAJUR LILÁS


Estava eu, outro dia, assistindo a uma chamada da Rede Globo de Televisão para a minissérie “Dalva e Herivelton”. Eu estou assistindo à minissérie. Para quem não está, digo que se trata de um trabalho muito bem feito sobre dois personagens fundamentais da Era de Ouro do rádio no Brasil, respectivamente, Dalva de Oliveira e Herivelton Martins.
Algumas coisas me fizeram assistir ao programa. A primeira delas, eu diria, foi ter assistido, no ano passado, à minissérie “Maísa”, que reputo como um dos melhores trabalhos que vi na Rede Globo desde “Um Só Coração”.
Outro fator decisivo, foram minhas memórias, minhas lembranças relacionadas a Dalva de Oliveira e Herivelton Martins. Nesse momento, o amigo que possa, por algum tipo de acidente do destino, estar lendo esta crônica, deve ter pensado: putz, o cara aí já está com uma certa idade. Sim, é verdade, mas, nem tanto - e explico.
Quando estes ilustres personagens faziam um retumbante sucesso no meio musical do país eu nem era nascido ou estava pra nascer. Minhas lembranças dos dois vem por tabela, primeiro, e depois por curiosidade.
Viajo, então, nas nuvens da memória, até minha infância. Menino, meninote, morávamos no bairro da Serra, em Belo Horizonte. Rua Henrique Passini. Uma pequena casa para uma família grande: pai, mãe e seis filhos. Os mais novos, Rodrigo e Augusto, ainda de colo, ou quase isso. Laís, merecia ainda o apelido: um “pingo” de gente. Cuja diversão maior era fazer xixi na calçada e observar os caminhos e descaminhos do líquido, rua abaixo – curiosa diversão... Fico imaginando o que ela refletia nesses momentos...
Não tenho memórias musicais da casa da rua Henrique Passini. Lembro de coisas interessantes, como as brincadeiras com boi de chuchu, caminhãozinho de caixa de papelão... Uma carruagem de plásticos com cavalos brancos sob a minha cama em um jurássico e irreal Natal – essa memória é tão leve e profunda que ainda me pergunto se foi um sonho.
Lembro do velho ford, lembro de como ele me impressionava: uma imensa e poderosa propriedade da família. Não era um carro do ano, mas me orgulhava por meu pai poder ser proprietário de algo tão maravilhoso e enorme.
Lembro do sarampo coletivo de meus irmãos e irmãos. Na verdade, não sei se era sarampo, ou catapora, ou qualquer outra dessas doenças de “antigamente”. Mas, me lembro claramente de minhas irmãs no mesmo quarto, sob cuidados da minha mãe. Eu achava aquilo muito engraçado. Nessa época, era comum que os pais colocassem os filhos todos junto ao doente para que todo mundo ficasse logo doente e pronto, adquirindo imunidade coletiva para aquela doença. Já que todo mundo ia pegar mesmo, que pegasse logo – claro que isto valia para doenças...light, digamos.
Lembro de tomar banho com violeta genciana. Muito divertido: todo mundo roxinho! Lembro de ter tido furúnculos.
Pois eis que me perco em lembranças e não vou àquelas que interessam no momento: Dalva e Erivelton.
Como dizia, não tenho memórias musicais da rua Henrique Passini. A música nasceu na minha vida, aparentemente, quando nos mudamos para a rua Corinto. Acho que o motivo disso era a radiola. Para quem não sabe o que é uma radiola, é o nome que se dava a um móvel – nesse caso um móvel com os famosos pés de palito, típicos dos anos 60, no qual ficavam embutidos um rádio e um toca-discos – também chamado de vitrola. A soma de rádio com vitrola, portanto, dava origem à radiola. A radiola é a bisavó dos microsystems atuais.
Não sei se essa radiola foi adquirida após a mudança ou se ela já existia. O fato é que ela passou a existir, pra mim, na rua Corinto. Ela ficava na sala de estudos, onde a bagunça infanto-juvenil era permitida. Diante disso, pude mexer nela livremente – talvez por isso, a memória.
Eu cutucava todos os botões de sintonia do rádio e pesquisa os “Long Plays” que ali ficavam guardados. Com muito cuidado, essa pesquisa incluía discos mais antigos ainda, que pertenciam ao meu pai: eram discos que tocavam em 45 rotações – os “modernos” rodavam a 36 rotações. Os de 45 eram extremamente frágeis, quebravam facilmente.
Aqui, chegamos à origem, à base do que eu posso considerar como minha iniciação musical. Esses discos, eram discos variados, e eu os ouvia. Ouvia repetidamente, dando-me tempo para decidir se gostava, ou para aprender a gostar. Ou ainda, tolerar.
Havia ali, por exemplo, os Strauss, pai e filho. Eu achava o pai tedioso e o filho, vibrante. Me apaixonei pela “Valsa do Imperador”, “O Morcego” e “Vinhos, Música e Mulheres” – também com esse nome, é fácil gostar.
Havia lá também um disco curioso, com o canto de aves do Brasil. Eu era simplesmente a-lu-ci-na-do por esse disco. Gravado principalmente na Amazônia, podia-se ouvir a floresta – isso me emocionava: mais do que o canto de cada ave, quando o microfone se abria para a gravação, podia ouvir ao fundo os ecos da floresta. Pra mim, era um momento mágico. Eu, literalmente, me sentia na floresta amazônica, dentro do barco, com aquele sujeito maluco o suficiente para ir até lá – Johan Dalgas Frisch, o nome dele (Ora, amigo, claro que não me lembrava, mas: Google!)
Imaginem os senhores: se a Amazônia parece um mundo distante para nós, hoje, no século XXI, no século on-line, na era do “real time” e da comunicação, imagine o que era na cabeça de um garoto nascido e criado em Belo Horizonte, a floresta amazônica, nos anos 60/70 do século XX.
Havia também uma coleção de discos de Música Popular Brasileira. Nesse ponto, a viagem era ainda mais fantástica: Francisco Alves, Lupicinio Rodrigues, Inezita Barroso, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves, Dilermando Reis, Pixinguinha e muitos mais. A partir daí, a MPB, pra mim, passou a ter uma história. Aprendi que ela não nasceu comigo.
Havia mais: João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Morais, Maísa, Nara Leão... E havia os nossos discos, os discos da garotada: nessa época, Beatles, Roberto Carlos, Ronnie Von – minha irmã Ângela queria se casar com ele quando crescesse. Um pouco depois: Chico Buarque, Caetano Veloso, Rolling Stones, Gilberto Gil, Janis Joplin, e por aí vai....
Discos de Dalva de Oliveira, ou de Herivelton Martins, do Trio de Ouro, nenhum. Mas, o nome Herivelton Martins eu já conhecia, como compositor de várias das músicas que eu ouvia naqueles discos. Dalva de Oliveira me veio pelo som da voz de meu pai e minha mãe, e pelo rádio e pela televisão.
O fato que quero ressaltar é que, aqueles velhos discos me fizeram aprender a ouvir o que não era “do meu tempo”, como muitos dizem.
Meu pai cantava uma música (bom, em se tratando do meu pai, “cantar” é modo de dizer. É uma das pessoas mais desafinadas que eu já ouvi na vida, o que, aliás, não tem a menor importância diante da importância da música) e eu queria saber de quem era, quem cantava, e depois prestava atenção quando ouvia a mesma música de novo em algum lugar. Meus avós também contribuíram muito para esse aprendizado.
Hoje, eu diria que, pra quem não é do ramo, tenho uma formação musical muito ampla da música popular brasileira, e da música, de um modo geral.
Quando me pergunto de que ritmos eu gosto, costumo responder: “gosto de música”. Não me furto a ouvir nada. Gosto de quase tudo, incluindo muito do que chamam de “brega”, desde Oldair José ao Calcinha Preta. Se o ritmo me agrada, se a letra é curiosa, importante ou divertida, é o que me basta: “Gostei”. E pronto. Não tenho medo algum de rótulos e outras prisões. Qualquer limite ao nosso conhecimento ou formação, é um limite, e isso quase nunca é bom.
Diante de tudo isso, possuído por todas essas lembrança, quando me sento em frente à TV, assistindo ao programa, uma estranha saudade me invade. A maior parte do que vejo ali, não vivi, mas me dá saudade: são as minhas lembranças em ação. Tenho um profundo afeto por aquelas músicas, pela voz de Dalva de Oliveira e outros personagens que aparecem à medida em que a história se desenrola: Emilinha Borba, Marlene, Grande Otelo, Ataulfo Alves e tantos outros. Quase todos eles, conheci já famosos, já com alguma idade, alguns já haviam morrido, e outros já estavam afastados da mídia, “aposentados” pelos modismos, pelas mudanças naturais impostas pelas novas gerações, pelos novos valores – ou pela falta deles. Mas, minhas lembranças dão a eles uma dimensão pessoal profunda, como se alguém me trouxesse, de velhos amigos, velhos retratos. Como se eu vasculhasse guardados meus que eu mesmo não conhecia.
E, afinal, era disso que eu queria falar: lembranças, memória. Quando dizemos que nós somos o que nós vivemos, penso hoje, que isso seja uma expressão incompleta ou mal compreendida.
Nós somos além do que vivemos. Nós somos produto também dos ecos do que vivemos, ou melhor, de uma espécie de rastro do tempo, que nos irmana, que atravessa gerações e gerações, até o primeiro de nós.
Vemos muito pouco de nós. Somos, cada um de nós, como um cometa: vemos a parte imediata, óbvia, ilusoriamente principal, e deixamos de perceber a longa e interminável calda, onde fragmentos da matéria inicial do universo ainda persistem. Invisíveis, mas presentes. Se soubéssemos realmente nos ouvir, ouviríamos não só o bater de nossos corações, não só nossos próprios pensamentos, não só os grilos, as campainhas, os rádios, as tvs, os amigos, as buzinas, os cães, os pássaros, o silêncio da noite: poderíamos ouvir em nossa corrente sanguínea ou no interior de nossos genes, todos os sons, todas as dores e alegrias, todas as incertezas, todas as descobertas, todos os medos e desejos da humanidade. Dentro de nós, ou melhor, em nós vive a memória de toda a espécie e, quisá, do universo.
Ouso, vindo das minhas lembranças o som da voz de minha mãe cantando o “Que Será” (também conhecida como “Abajur Lilás”), cujo autor é Marino Pinto, e que Dalva de Oliveira eternizou.
Vasculho o som e imagino ter ouvido os ecos do “Big Bang”...