Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

terça-feira, 11 de março de 2014

O MAGO

O MAGO



O menino jogava futebol de botão. Concentrado, tocava habilmente o beque - o beque central, o “center-half”, como dizia o avô. Aquele beque era seu orgulho. Uma antiga e enorme lente de relógio de bolso. Amarelada pelo tempo, com pequenas rachaduras nas bordas, certamente já inútil como lente de relógio, mas de enervante eficiência para os adversários à frente da área do “Estrelão”.
Um passe perfeito colocou em jogo o meio-campista de matéria plástica, nascido de muito trabalho com pedaços de plástico, fogo, fôrma de empadinha e lixa d’água. Ajeitou... mais um toque para a direita... e avisou, solene: “pra gol”. Sacudiu os ombros, posicionando melhor as mangas da camisa do Cruzeiro e... “agarrrrrrrrrrra o golllleeeeiiiiiirrrrrooo”! Droga. O maçudo goleiro do adversário, uma caixa de fósforos recheada com pedaços de chumbo e revestida com durex, era uma verdadeira muralha.
Deixou a casa do amigo amargando uma derrota por 5 a 2. Pudera, o cara era campeão da rua, dono do “estádio”; jogava com um time de acrílico que tinha o escudo do Galo em cima... Troço de primeira, caro pra caramba... Tinha que ser atleticano o campeão da rua, porra!?
Foi até o bar. O bar, muito chique: balcão de pedra, granito cor-de-areia, banquinhos com acento em courino laranja; um baleiro de seis bocas, giratório, que rangia divinamente como um carrossel. Um carrossel musical de açucares rodando, rodando, à espera de uma decisão do freguês enebriado. Depois, a tampa de lata na mão do português, o dinheiro amarrotado no balcão e o equivalente em balas crescendo sob o olhar esgazeado e a voz contando: “cinco... dez... quinze... e uma de “pinga”.
Lugar de delícias aquele bar. Além dos doces, o menino era também freguês do “pão molhado” e da porção de farofa colocada pelo balconista num quadrado de papel de embrulho e degustada aos “tapas na boca” na escadinha vermelha do bar.
O menino passava o fim de semana com os avós. Ele, o avô, bancário, do Banco da Lavoura: camisa “Volta ao Mundo”, gravatinha preta com prendedor prateado. Criava pássaros. Criava, especialmente, um curió afamado no bairro. Um curió que valia ouro. E o avô limpava-lhe a gaiola, balanceava cientificamente a ração, proteinizando-lhe o canto. Atentava também para o estado emocional de sua jóia, dispensando ao pássaro algumas horas diárias de boa e amigável prosa. Eram como um ourives e sua pepita rara.
A avó fazia sonhos recheados com doce de leite, contava casos de Pirapora e de Nova Era; e lia Agripa Vasconcelos. À noite, sentava-se em frente à TV e ao lado da pequena caixa acústica, encantadora obra de engenharia eletrônica do marido, para acompanhar a crescente degradação moral da televisão brasileira. Ela não escutava bem, mas tinha olhos muito críticos.
Tarde da noite, o menino assistia sozinho ao seriado “Combate” e pensava que o dia seguinte era um domingo. Pensava que domingo era dia de feira e que o homem estaria lá. Pensava que o homem, amanhã, lhe faria uma faca, logo cedo, na feira, como prometera o avô.
Então, domingo. Um domingo azul como os desejos infantis. Ele e o avô. A sacola de feira colorida.
O menino tentava, debilmente, controlar a ansiedade brincando de contar carros a caminho da feira. Passaram pelo bar, subiram a rua, passaram pela sapataria. O avô conversava, da portinha minúscula, com um homem lá dentro. O menino sentia o cheiro de couro e graxa que vinha do outro lado do balcão de madeira amarelo. E via, na rua, outras pessoas, com outras sacolas coloridas, também a caminho da feira. A feira logo ali, a poucos metros. E a conversa interminável do avô com aquela voz antiga que vinha do cheiro.
Distraiu-se observando a “joaninha” da polícia civil que parou em frente ao bar. O “polícia” que estava ao volante desceu, entrou no bar, voltando pouco depois com um maço vermelho de “Capri” nas mãos.
- “Passo na volta, então, “Seu” Geraldo”.
Caminhavam outra vez. Cada vez mais gente. O burburinho aumentando, o ar agitado. A feira estendia-se por mais de três quarteirões, no alto da rua. Lá, do final, na esquina onde havia um armarinho, podia-se ver o viaduto, com seus arcos feito costelas expostas de um animal gigantesco.
Onde será que o avô iria primeiro? Onde? Caminhava e aguardava, o coração aos pulos. Uma alegria quente ganhava o menino na medida em que adivinhava nos passos do avô a barraca do homem, daquele homem.
Sorria como só os meninos quando pararam em frente à barraca. Lá estava ele: o mago. O homem que respirava desejos e exalava realidade.
O mago deixou de lado a madeira que encantava para cumprimentá-los. O avô perguntou pela gaiola que encomendara. O avô encomendara uma gaiola nova para sua jóia canora. Encomendara uma gaiola ao mago da madeira; encomendara, portanto, uma gaiola mágica.
O homem, o mago da feira, disse : “Aqui está, mas o senhor me dê alguns minutos para os últimos retoques”. “Claro”, respondeu o avô. E o mago iniciou a conversa tradicional, o ritual de passagem de suas criações, como sempre iniciava: “Imagine o senhor que”... E prosseguiu na mesma linha: “Agora, imagine o senhor se”...
O menino só via as mãos do mago e os pequenos pedaços de madeira sendo meticulosamente acertados, lixados, encaixados. Como era possível? - a alma do menino se perguntava. As lasquinhas e a serragem ganhavam o vento leve do domingo azul, como sementes da capacidade criadora humana; como pirlimpimpim da fada Sininho, no filme de Walt Disney.
A conversa seguia. A madeira parecia chamar pelo curió: “Pois o senhor imagine que”... Ziiiit, ziiiiit, ziiiit... E o olhar terradonunca do menino.
Terminada a gaiola, o avô e o mago voltaram-se para ele. Era chegada a vez do seu desejo. Uma faca, uma faquinha de madeira. Risos, um afago nos cabelos... “É pra já, meu rapaz”!
O mago escolheu, tateando com seus dedos gepetos, o toco de madeira adequado ao desejo proclamado na feira pelo menino. E começou a trabalhar, desta vez em silêncio. Ziiit, ziiit, zap, zap, ziiit: a madeira. Nascia a faquinha, a faquinha de madeira. Ele era menino; meninos não podem andar com facas. Mas, em breve, teria uma faca, de madeira, feita ali na feira, pelo mago, é claro.
Então, aquele homem, aquele mago azul do domingo, entregou-lhe a faquinha, sorrindo. Ele, menino, não disse nada, naturalmente: seus olhos encarregaram-se de transmitir a magia do momento.
Saíram, menino e avô, pela feira. Nas mãos, a faca, a faquinha. E já brincava. O avô comprava legumes, frutas e jiló tipo extra para o curió, enquanto o menino matava piratas, padres e professoras: só pra ficar no pê, que era uma letra que tinha uma língua inteira. Voavam membros, agonizavam vilões aos montes. O instrumento mágico deslizava pelos ares mortais nas mãos do herói em calças curtas.
Em casa, guardou, com cuidados de louça, sua faquinha. Bem junto ao beque de lente e ao meio-campista de matéria plástica.
Passou algum tempo, o menino, sem voltar à casa dos avós. Preparava-se financeiramente para realizar um novo desejo. E quando finalmente voltou, numa sexta-feira sombria, - vazia de cheiros, ventos estranhos, nuvens pesadas, crianças em casa - , recebeu a notícia: o homem, o mago da feira, “o senhor imagine”, havia morrido.
Morreu? O que é isso... morreu? Como assim, morreu? O homem da feira?... Ele morreu?

As crianças têm profundas decepções com o sobrenatural.


Murilo Cisalpino