Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O VIÚVO VIRGEM


"Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo, do fogo das coisas que são
É o sol, é a estrada, é o tempo, é o pé e é o chão"

C. Veloso


Para meu avô, Dagoberto Amorim Silva
Criador de Passarinhos no Jardim do Éden

O VIÚVO VIRGEM


   Ele nasceu em uma família de classe média, em Maceió, Alagoas. Ainda muito jovem, morreram-lhe os pais. Ele e a irmã, ainda mais jovem, foram morar com um tio. Estávamos então nos primeiros anos do século XX.
   O tio, homem muito tradicional e autoritário, era chamado pela esposa de "senhor meu marido". Durante as refeições, ela servia o marido e as crianças e só depois sentava-se à mesa. E todos, à mesa, esperavam que ele começasse a comer antes de fazerem o mesmo.
   Levantar-se da mesa antes dele? Nem pensar. Falar alguma coisa à mesa? Só se ele perguntasse ou se dirigisse à pessoa. Crianças então: silêncio total. E modos: o jeito certo de se vestir para as refeições, o jeito certo de sentar, o jeito certo de comer, etc, etc, etc.
   Certo dia, terminada a refeição, o tio pediu que trouxessem a sobremesa: um lindo cacho de bananas. O garoto não se conteve, ou nem percebeu que havia falado alto: "Que lindas bananas". Foi só isso que ele falou. E foi o que bastou. Pelo atrevimento de falar à mesa sem autorização, foi obrigado pelo tio a comer o cacho inteiro.
   O sacrifício para comer aquilo tudo foi enorme. Mas ele fez questão de não chorar, de não reclamar, nada. Terminado o cacho, continuou na mesa por mais uma hora, esperando autorização do tio para se retirar.
   A vida não era fácil ali. Nem pra ele, nem pra irmã. Era preciso fazer alguma coisa, e cabia a ele. Então, fugiu de casa. Foi para o Rio de Janeiro, aos 14 anos de idade, em busca de uma outra vida, pra ele e para a irmã.
   Sem profissão definida, com pouca ou quase nenhuma experiência de trabalho, menor de idade e sem formação escolar completa, foi trabalhar no cais do porto. estivador. E depois de algumas semanas na cidade, fez amizade com uma prostituta da região. E foi morar com ela, no quartinho que ela usava como local de trabalho, no bordel.
   Aprendeu muito ali, sobre a vida e sobre as pessoas. Aprendeu também a dançar. Um verdadeiro pé de valsa, que um dia dançaria um frevo, tendo a filha como parceira, para o Rei da Bélgica, em visita ao Brasil.
   Trabalhando e estudando, enfim conseguiu uma vaga no banco: Banco da Lavoura. E transferiu-se para Belo Horizonte. 
   A jovem e formosa capital mineira, recebeu o rapaz de braços abertos. Organizou a vida, trouxe a irmã para viver com ele. E foi ali também onde conheceu o amor: apaixonou-se por um jovem mineira. Funcionário estável do Banco da Lavoura, foi bem recebido pela família da jovem. Namorava como se devia: dentro de casa, no sofá, cada um num canto, guardados sempre por alguém da família.
   Planejavam o noivado e o casamento. Mas ela ficou gravemente doente: contraiu a "Espanhola". A moça definhava mais e mais a cada dia. Angustiado, queria ficar ao lado dela, o máximo que pudesse. Mas, uma moça solteira, de boa família, não podia ficar sozinha no quarto com um homem que não fosse seu marido.
   Ele, então, casou-se com ela. Casou-se para poder acompanhar sua amada em seus últimos dias. E esses dias foram poucos.
   A história correu: o rapaz, funcionário do Banco da Lavoura, que se casara com a moça no leito de morte. E ele ficou conhecido como o "Viúvo Virgem". Andava pela rua e sentia sempre o olhar e os comentários das pessoas. Todo mundo queria saber quem era o Viúvo Virgem. Gente saia de casa ou se atirava na janela quando ele passava. E ele passava, sereno e tranquilo com seu gesto de amor, do qual se orgulhava, Os outros pouco importavam.
    Leondina, era uma dessas jovens que se atiravam com curiosidade na janela quando o "viuvinho virgem" passava. Leondina se agradou dele, e ele dela. Primeiro os olhares, pontuais, da janela. Todo dia. Depois as conversas no portão de casa. Depois, foi à casa de Leondina, apresentou-se, e pediu permissão para namorá-la.
     Namoraram, casaram, tiveram quatro filhos. E viveram juntos, entre passarinhos, netos e bisnetos, por mais 60 anos.
    Um dia, ela adoeceu. Foram alguns anos ao lado da cama de "Dona Santa", como ela era chamada por todos. Até que ela se foi, como um passarinho.
   Não demorou muito para que ele a acompanhasse. Dizem que foi tristeza.