Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 2

OS ÓCULOS DE DRUMMOND

“Nesta cidade do Rio,
De dois milhões de habitantes,
Estou sozinho no quarto,
Estou sozinho na América”

A BRUXA – Carlos Drummond de Andrade


A prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, anunciou, nos últimos dias, a instalação de uma câmera de vigilância, 24 horas, para a estátua de Carlos Drummond de Andrade, que está assentada (em todos os sentidos possíveis) em um banco, na calçada, em frente à praia de Copacabana.
A Cidade Maravilhosa: uma das sedes da Copa do Mundo de 2014, e sede também das Olimpíadas de 2016, das quais o atual governo tanto se vangloria, como sinais do sucesso de sua administração, que teria sido capaz de transformar o Brasil no país “que vai pra frente” – a primeira curiosidade aqui é observar como todos os matizes da vida política nacional sempre usam dos mesmos instrumentos.
Ainda segundo a prefeitura do Rio de janeiro, o objetivo é coibir o ataque dos vândalos à estátua. Já foram sete atentados – digamos assim, desde que a estátua foi ali colocada, em 1987. O alvo são os óculos por serem a parte mais frágil da estrutura.
A mesma prefeitura avalia que os ataques são fruto de “molecagem”, já que o meliante conseguiria em torno de meros R$ 8,00 pelos óculos de Drummond nas empresas que compram o bronze.
Informa ainda a prefeitura que os óculos de Drummond levam quinze dias para serem feitos e meia hora para serem soldados à estátua (um poema, por sua vez, pode levar décadas para ser escrito, minutos para ser lido, e emocionar por toda a eternidade).
O jornal do qual retirei essas informações, acrescenta que o afluxo de turistas à estátua aumentou, porque queriam registrar a colocação dos óculos. A alguns dos turistas era necessário esclarecer quem foi Carlos Drummond de Andrade e porque sua estátua está ali, naquela praia, docemente sentada, como a conversar com os transeuntes.
Eu considero que há algumas questões aqui que vão além dos fatos, ou melhor, há questões nas entrelinhas de tudo isso, que ninguém registrou ou sobre elas refletiu.
Podemos começar pelo fato de um dos poetas maiores da língua portuguesa ser um desconhecido para uma parte muito considerável da população brasileira. Mas, no Brasil do Lula, não vamos cobrar isso de ninguém. No Brasil do Imortal José Sarney, e seu “Marimbondos de Fogo”, não vamos cobrar de ninguém não saber quem foi Drummond e muito menos cobraremos saber do saber que há em Drummond.
Alguém poderia alegar que isso é natural, em um país onde o número de livrarias – considerado todo o território nacional, vejam bem, é menor do que na província de Buenos Aires. A coisa fica pior se fizermos a proporção entre a população argentina e a população brasileira.
A realidade é que o Brasil que vai pra frente do Lula, é ainda o Brasil que ia pra frente dos militares: uma paisagem de analfabetos funcionais. Hoje, nossos índices de analfabetismo são menores do que nos anos 70, o que não quer dizer que fomos resgatados da ignorância.
Alguém poderia alegar que isso é natural, em um país onde o ensino público ainda está atolado na mediocridade, fruto do descaso e do desamparo estruturais que se arrasta há décadas. Mas, pra quê escola em um país onde o presidente vende sua popularidade ostentando orgulhosamente a bandeira da falta de estudo? Um mandatário que cuidadosamente seleciona erros de português para manter sua imagem de “intelectual orgânico nascido das massas trabalhadoras”, como diria Antônio Gramsci, intelectual italiano que fornece a espinha dorsal ao Partido dos Trabalhadores.. Um líder que elabora pérolas de ridículo discurso de porta de fábrica e querem que nós achemos isso lindinho, porque ele é um modesto trabalhador que chegou lá, e falar mal do Lulinha é ser reacionário – considerando a pobreza intelectual da esquerda brasileira, ser reacionário, a mim, parece um elogio.
Sob outra ótica – desculpem, mas era irresistível esse trocadilho, podemos considerar que a pessoa que alegou “molecagem” porque “ninguém ganha dinheiro roubando os óculos”, “avaliados” em R$ 8,00 – valor de seu peso em bronze, ou não conhece o país em que vive, ou prefere não conhecer . Os ridículos oito reais podem significar a sobrevivência, naquele dia, de milhares de moradores de rua do Rio de Janeiro.
Comparando com os programas sociais do governo, oito reais significam em torno de 16% do Bolsa Família. E o governo considera o Bolsa Família como um programa que está acabando com as profundas diferenças sociais do Brasil. Por aí, acha que podemos resignificar esse “meros” oito reais.
Oito reais podem pagar pedras de craque ou ajudar a comprar cola, para aliviar o frio ou a fome de milhares de moradores de rua do Rio de janeiro, sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, das quais os brasileiros tanto se orgulham. Mas certamente pensam em como limpar as ruas do Rio de janeiro até lá, pois ficam indignados com a “imagem que os estrangeiros fazem do Brasil” – imagem essa, na maioria absoluta dos casos, totalmente verdadeira, já que não lhes interessa colocar nada debaixo do tapete. Guardam isso para seus próprios países, é claro.
Mas, depois disso tudo dito, constato que ainda não cheguei nem perto de onde queria chegar com essa crônica. Queria falar de Drummond, ou melhor, queria me colocar no lugar de Drummond e pensar como ele veria isso. Queria considerar como é que os óculos de Drummond enxergam tudo isso.
O que é de um país onde os óculos de bronze de uma estátua são mais atraentes que a obra do representado? O que é de um país onde turistas procuram essa estátua por causa dos óculos de bronze e não do que aqueles olhos ali representados viram em sua passagem pelo planeta? E esse olhar, traduzido em palavras, constitui-se em patrimônio de toda a humanidade, numa dimensão infinitamente maior do que a própria estátua. Mas isso, poucos enxergam.
O que será de um país tão míope? De que matéria seriam feitos os óculos para todo esse país? E suspeito que, se fosse possível produzir óculos assim para o Brasil, certamente alguém roubaria, seja em troca da sobrevivência imediata, seja pela molecagem, que ainda é considerada traço de caráter do brasileiro – pois é... falando em miopias...
De que é feito um país onde a estátua de Drummond é simplesmente mais uma depredada, como são outras : meu pai já se indignava com a solidão e os maus tratos á estátua de Pedro Nava, em Belo Horizonte. Dois solitários e mal tratados da mesma geração. Talvez conversem em algum lugar sobre isso, Drummond e Pedro Nava – não direi que é o tedioso Jardim do Éden, já que não desejaria isso a nenhum dos dois.
E aí vão também todo tipo de monumento histórico e natural, das estátuas do Aleijadinho, em Congonhas do Campo, aos estalactites e estalagmites da gruta de maquine, até as pinturas rupestres dos sítios arqueológicos do Nordeste. Com um canivete, um míope sempre aparece para escrever o próprio nome e o da “amada”... No manto do profeta do Aleijadinho, estão “Joelson e Rosicleide”, para sempre. E ainda fotografam para mostrar a “obra” aos amigos...
Nesta cidade do Rio, poeta, hoje com seis milhões de habitantes – e nem precisava tanto, você está sozinho, na praia, sozinho na América. Será que, a essa hora tardia – as horas também tardam em valores, tardam em amor, tardam em justiça social, tardam em sensibilidade – você terá apenas como amiga, uma câmera do departamento de trânsito da prefeitura do Rio de Janeiro e um turista fortuito, mais curioso com a solda do que com os versos?
E não adianta voltar pra Minas, poeta, aqui Pedro Nava vive as mesmas mazelas.
Esta é uma confidência - ou inconfidência, exalando deste homem, poeta.

A dureza do bronze não preservará a obra de Drummond. Serão meus olhos e minha alma a fazerem isso.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 01

Acordo sem pensar em trabalho, acordo sem compromissos, a não ser comigo mesmo. Não há horários a me apertar os passos.
Decido pois, comprar cigarros. São seis e trinta e só há mais um cigarro no maço e o posto de gasolina já está funcionando. Pego as chaves do carro, abro a porta...Me vem mais uma vez a prazeirosa lembrança de que não há horários e o dia é só meu.
Saio, cruzo a distância entre porta e portão, o sinal do alarme do carro me atrai rapidamente o olhar e, quando volto a atenção para o cadeado do portão, a surpresa: a presença languida, negra e tristonha de uma vaca. Ela me olha com um olhar de cachorro urbano virando lixo e eu a olho com um olhar de fazenda. E ela rapidamente nota meu equívoco.
Neste momento, se eu disser que ela escorregou-me um breve "pois é, uma vaca, na cidade, bobalhão" no canto do grande olho castanho-curral ninguém acreditaria... Mas é a mais natural das verdades diante da situação.
Segundos... ou melhor, frações de segundos em que revivi milhões de referências: Barbacena, Fazenda do Machadinho, Silos, leite com goiabada, a prima Maria Laura, Tio Zé, Cigarro de Palha, viola, o cachorro Leão, Cordisburgo, umbigo, paineira, chuva nas curvas de nível, bambuzal, meu pai, peixe seco, Toninho, limão capeta, urucum, lixia, Guimarães Rosa... Tudo isso exalou em espírito e saudade daquele corpo magro e solitário da vaca urbana.
Abro o portão, com gestos calmos e amigáveis, para não espantar a visita, permitindo que ela continuasse seu trabalho de procurar algo no lixo. A vaca e o lixo urbano. E como cresceu o conceito de lixo urbano diante da simples presença da vaca. Agora, a cidade parecia sobrando, a cidade enchia de impurezas a pura presença da vaca.
Um garoto com uniforme de escola municipal invadiu a cena, em sua bicicleta barulhentamente vermelha. E seu olhar foi de assombro, com cheiro de medo. As mãos mostraram indecisão na condução do veículo. Ele então acelerou, com certeza pra fugir daquele extra-terreste que certamente ruminava algo contra ele. Disparou ruabaixo murmurando... Não pude compreender o que murmurava, mas imagino que se perguntava o que havia acontecido tão de repente com seu universo, com sua rotina de ruas e prédios e carros e lixo urbano, interrompida e aviltada pela presença da vaca. Ela... nem-te-ligo.
Entrei no carro, retirei-o da garagem - imaginei que ela devia estar acostumada com veículos. Outra enxurrada de imagens: trator, carro de bois, caminhonete, carroça, rangidos, o som das folhas da cana-de-açucar se arrastando pela estrada de terra batida, o ronco do motor do caminhão de leite, meu tio Geraldo e a Linha de Leite do Hotel Grogotó em Barbacena...
Quando desci do carro para fechar o portão, ela virou-se, puxando alguma coisa do lixo com a boca: era um saco plástico, molhado, encharcado, que bateu.. splach!... no asfalto. E olhou pra mim, e o olhar era de resignada frustração, e eu li nesse olhar: essa é minha vida, aqui, nesse lixo urbano. O lixo urbano, que tantas vezes vi alimentando pessoas, não alimentava a vaca. Sua magreza era a prova da falta absoluta de alimentos, na cidade, para o corpo e a alma das vacas.
Então, ela virou, e começou a caminhar. Lentamente, como quem pensa na vida, como quem quer gastar o tempo, tempo que em certos momentos nos parece - e certamente parecia a ela, naquele momento, um peso grande demais pra carregar. E nos movemos lentamente nesse tempo denso como leite, como coalhada.
A vaca subiu a ladeira da Igreja, nesse passo lento, envolvida pela solidão, como uma vaca solta na cidade. Eu a olhava, e seu passo surreal na ladeira da Igreja, sua solidão bovina na aridez urbana me entristeceu, porque parecia que todas aquelas lembranças, toda aquela explosão afetiva que emergiu da alma da vaca, do seu olhar, do seu lento ruminar, parecia ir embora com ela, parecia igualmente irreal, distante, longínguo... Para sempre perdido, sem lugar... como uma vaca na cidade.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM

As minhas férias se aproximam. O número de aulas começa a diminuir, progressivamente, e mais tempo para outras atividades se avizinha.
No ano passado, durante esse período, usei muito do tempo disponível para escrever o "Diário de Classe", que já coloquei aqui neste blog para desespero de muitos e alegria de poucos. Quando comecei o "Diário de Classe", pretendia, na verdade, fazer um simples diário, um exercício cotidiano de escrita, para aproveitar o tempo. Acabou se transformando em outra coisa.
Pois bem, este ano, decidi retomar a experiência, novamente com a idéia inicial de um diário, mas agora com reflexões, aproveitando o espaço e a colaboração de alguns que a piedade, a amizade, ou a falta do que fazer traz a este meu espaço.
Vou tentar desenvolver e expor algumas coisas, absolutamente corriqueiras e - talvez por isso, muitas vezes inusitadas que me ocorrem.
Aguardem. Começo nos próximos dias. Espero, é claro, a contribuição de vocês.
Abraços!