A BLUSA AZUL
Para Minha Avó Materna, Dona Nair
Para Dona Terezinha, com quem tive pouco tempo para conviver por aqui, neste planeta, mas que foi suficiente para construir um grande respeito e amizade
"Time is on my side (Yes, it is!)"
Rolling Stones
A
velha senhora costurava sua vida ao tilintar sutil e frágil das
agulhas de tricô. A sala vazia conspirava em móveis, louças e
rendas, prenhe de personagens, plena de memórias.
Na
cozinha, o silêncio do fogão dizia das tardes de sábado, ocupadas
de filhos e netos e bifes e sonhos e desejos em espirais perfumadas
inspirando a vizinhança e o mundo.
Na
sala vazia e guardada em histórias ela tecia um inverno por vir.
Como sempre fez, procurava agasalhar, aconchegar, proteger. Um
arrepio, que percorreu-lhe a espinha dorsal da família, trouxe a
certeza de que era inverno há décadas nas veias da vida.
A
sombra de uma árvore centenária, sobre a qual os micos da praça
procuravam sustento, rompeu a distância entre a sacada do
apartamento e a rua, trazendo consigo a brisa ingênua da manhã,
ainda virgem dos fatos. Os olhos insistem, o corpo resiste, os óculos
são ajeitados seguidamente, espantando o cansaço, o frio e o frio.
A cabeça curva-se ainda mais, as costas respondem, mas as agulhas
retornam à dança dos nós.
Rostos
povoam seus movimentos: ela é muitos. Filhos a se meter em más
companhias, tombos de bicicleta, novos valores morais, velhos valores
morais, casamentos, descasamentos, reconstruções, livros, amigas,
amigos, maridos, minisaia, um tio alcoolista, a mulher do tio, um
acidente de carro, a fazenda, os lucros, as perdas, reconstruções,
mágoas, um certo natal, um anel de brilhantes, aquela música, um
amor impossível, a família, as famílias, as mortes, os nascimentos
dos netos, novas tecnologias, velhos remédios, um rosto sem nome,
aquela fotografia, as viagens, as partidas, um que não voltou, e a
saudade de um bicho de estimação.
À
sombra da árvore onde os macaquinhos divertem crianças, recostada
aos joelhos que esfriam à brisa da manhã, uma blusa toma forma.
Assim como a Terra, é azul, segundo o oficial soviético. Uma blusa
de lã azul vai entrar pra família, em breve.
Tanto
passado passa pela lã da blusa futura. A velha senhora previne o
frio por vir, nó a nó, enquanto a memória tece sua vida.
Um
dia na praia, um botão de madrepérola, um sorriso de um moço no
corso, uma revolução, uma prima brincando na chuva, uma surra, o
colo do pai, uma carta, uma escola, duas professoras, um piano, um
dia na capital, uma rosa entre as páginas de um caderno, uma fruta
madura, uma receita de família, um corte no dedo, uma decepção.
A
vida movia as agulhas de tricô na sala vazia. Mais um inverno por
vir. A velha senhora observa modelos na revista alemã. O relógio de
pêndulo ritma o silêncio. O apartamento levita: a velha senhora
carrega a ampulheta do tempo na cestinha de costura.