O MAGO
O
menino jogava futebol de botão. Concentrado, tocava habilmente o
beque - o beque central, o “center-half”, como dizia o avô.
Aquele beque era seu orgulho.
Uma antiga e enorme lente de relógio de bolso. Amarelada pelo tempo,
com pequenas rachaduras nas bordas, certamente já inútil como lente
de relógio, mas de enervante eficiência para os adversários à
frente da área do “Estrelão”.
Um
passe perfeito colocou em jogo o meio-campista de matéria plástica,
nascido de muito trabalho com pedaços de plástico, fogo, fôrma de
empadinha e lixa d’água. Ajeitou... mais um toque para a
direita... e avisou, solene: “pra gol”. Sacudiu os ombros,
posicionando melhor as mangas da camisa do Cruzeiro e...
“agarrrrrrrrrrra o golllleeeeiiiiiirrrrrooo”! Droga. O maçudo
goleiro do adversário, uma caixa de fósforos recheada com pedaços
de chumbo e revestida com durex, era uma verdadeira muralha.
Deixou
a casa do amigo amargando uma derrota por 5 a 2. Pudera, o cara era
campeão da rua, dono do “estádio”; jogava com um time de
acrílico que tinha o escudo do Galo em cima... Troço de primeira,
caro pra caramba... Tinha que ser atleticano o campeão da rua,
porra!?
Foi
até o bar. O bar, muito chique: balcão de pedra, granito
cor-de-areia, banquinhos com acento em courino laranja; um baleiro de
seis bocas, giratório, que rangia divinamente como um carrossel. Um
carrossel musical de açucares rodando, rodando, à espera de uma
decisão do freguês enebriado. Depois, a tampa de lata na mão do
português, o dinheiro amarrotado no balcão e o equivalente em balas
crescendo sob o olhar esgazeado e a voz contando: “cinco... dez...
quinze... e uma de “pinga”.
Lugar
de delícias aquele bar. Além dos doces, o menino era também
freguês do “pão molhado” e da porção de farofa colocada pelo
balconista num quadrado de papel de embrulho e degustada aos “tapas
na boca” na escadinha vermelha do bar.
O
menino passava o fim de semana com os avós. Ele, o avô, bancário,
do Banco da Lavoura: camisa “Volta ao Mundo”, gravatinha preta
com prendedor prateado. Criava pássaros. Criava, especialmente, um
curió afamado no bairro. Um curió que valia ouro. E o avô
limpava-lhe a gaiola, balanceava cientificamente a ração,
proteinizando-lhe o canto. Atentava também para o estado emocional
de sua jóia, dispensando ao pássaro algumas horas diárias de boa e
amigável prosa. Eram como um ourives e sua pepita rara.
A
avó fazia sonhos recheados com doce de leite, contava casos de
Pirapora e de Nova Era; e lia Agripa Vasconcelos. À noite,
sentava-se em frente à TV e ao lado da pequena caixa acústica,
encantadora obra de engenharia eletrônica do marido, para acompanhar
a crescente degradação moral da televisão brasileira. Ela não
escutava bem, mas tinha olhos muito críticos.
Tarde
da noite, o menino assistia sozinho ao seriado “Combate” e
pensava que o dia seguinte era um domingo. Pensava que domingo era
dia de feira e que o homem estaria lá. Pensava que o homem, amanhã,
lhe faria uma faca, logo cedo, na feira, como prometera o avô.
Então,
domingo. Um domingo azul como os desejos infantis. Ele e o avô. A
sacola de feira colorida.
O
menino tentava, debilmente, controlar a ansiedade brincando de contar
carros a caminho da feira. Passaram pelo bar, subiram a rua, passaram
pela sapataria. O avô conversava, da portinha minúscula, com um
homem lá dentro. O menino sentia o cheiro de couro e graxa que
vinha do outro lado do balcão de madeira amarelo. E via, na rua,
outras pessoas, com outras sacolas coloridas, também a caminho da
feira. A feira logo ali, a poucos metros. E a conversa interminável
do avô com aquela voz antiga que vinha do cheiro.
Distraiu-se
observando a “joaninha” da polícia civil que parou em frente ao
bar. O “polícia” que estava ao volante desceu, entrou no bar,
voltando pouco depois com um maço vermelho de “Capri” nas mãos.
-
“Passo na volta, então, “Seu” Geraldo”.
Caminhavam
outra vez. Cada vez mais gente. O burburinho aumentando, o ar
agitado. A feira estendia-se por mais de três quarteirões, no alto
da rua. Lá, do final, na esquina onde havia um armarinho, podia-se
ver o viaduto, com seus arcos feito costelas expostas de um animal
gigantesco.
Onde
será que o avô iria primeiro? Onde? Caminhava e aguardava, o
coração aos pulos. Uma alegria quente ganhava o menino na medida em
que adivinhava nos passos do avô a barraca do homem, daquele homem.
Sorria
como só os meninos quando pararam em frente à barraca. Lá estava
ele: o mago. O homem que respirava desejos e exalava realidade.
O
mago deixou de lado a madeira que encantava para cumprimentá-los. O
avô perguntou pela gaiola que encomendara. O avô encomendara uma
gaiola nova para sua jóia canora. Encomendara uma gaiola ao mago da
madeira; encomendara, portanto, uma gaiola mágica.
O
homem, o mago da feira, disse : “Aqui está, mas o senhor me dê
alguns minutos para os últimos retoques”. “Claro”, respondeu o
avô. E o mago iniciou a conversa tradicional, o ritual de passagem
de suas criações, como sempre iniciava: “Imagine o senhor que”...
E prosseguiu na mesma linha: “Agora, imagine o senhor se”...
O
menino só via as mãos do mago e os pequenos pedaços de madeira
sendo meticulosamente acertados, lixados, encaixados. Como era
possível? - a alma do menino se perguntava. As lasquinhas e a
serragem ganhavam o vento leve do domingo azul, como sementes da
capacidade criadora humana; como pirlimpimpim da fada Sininho, no
filme de Walt Disney.
A
conversa seguia. A madeira parecia chamar pelo curió: “Pois o
senhor imagine que”... Ziiiit, ziiiiit, ziiiit... E o olhar
terradonunca do menino.
Terminada
a gaiola, o avô e o mago voltaram-se para ele. Era chegada a vez do
seu desejo. Uma faca, uma faquinha de madeira. Risos, um afago nos
cabelos... “É pra já, meu rapaz”!
O
mago escolheu, tateando com seus dedos gepetos, o toco de madeira
adequado ao desejo proclamado na feira pelo menino. E começou a
trabalhar, desta vez em silêncio. Ziiit, ziiit, zap, zap, ziiit: a
madeira. Nascia a faquinha, a faquinha de madeira. Ele era menino;
meninos não podem andar com facas. Mas, em breve, teria uma faca, de
madeira, feita ali na feira, pelo mago, é claro.
Então,
aquele homem, aquele mago azul do domingo, entregou-lhe a faquinha,
sorrindo. Ele, menino, não disse nada, naturalmente: seus olhos
encarregaram-se de transmitir a magia do momento.
Saíram,
menino e avô, pela feira. Nas mãos, a faca, a faquinha. E já
brincava. O avô comprava legumes, frutas e jiló tipo extra para o
curió, enquanto o menino matava piratas, padres e professoras: só
pra ficar no pê, que era uma letra que tinha uma língua inteira.
Voavam membros, agonizavam vilões aos montes. O instrumento mágico
deslizava pelos ares mortais nas mãos do herói em calças curtas.
Em
casa, guardou, com cuidados de louça, sua faquinha. Bem junto ao
beque de lente e ao meio-campista de matéria plástica.
Passou
algum tempo, o menino, sem voltar à casa dos avós. Preparava-se
financeiramente para realizar um novo desejo. E quando finalmente
voltou, numa sexta-feira sombria, - vazia de cheiros, ventos
estranhos, nuvens pesadas, crianças em casa - , recebeu a notícia:
o homem, o mago da feira, “o senhor imagine”, havia morrido.
Morreu?
O que é isso... morreu? Como assim, morreu? O homem da feira?... Ele
morreu?
As
crianças têm profundas decepções com o sobrenatural.
Murilo Cisalpino
Murilo Cisalpino