A COPA DA CIDADANIA FOI PERDIDA
"Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem, quando rompia a primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado bicampeão do mundo. Foi um título que o escrete arrancou de suas rútilas entranhas. E, a partir da vitória, sumiram os imbecis, e repito: — não há mais idiotas nesta terra. Súbito o brasileiro, do pé-rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu, assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O bêbado tombado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos 75 milhões de reis"
Nelson Rodrigues - 1962
Quando
eu era garoto, o Brasil tornou-se tricampeão mundial de futebol, no
México. Me lembro ainda muito claramente de alguns lances dos vários
jogos do Brasil, naquela Copa do Mundo. Lembro do drible de corpo de
Pelé no goleiro uruguaio: o mais belo gol não feito que já vi. Me
lembro do passe de Tostão, quase caído, para Pelé no meio da área
e deste para Jairzinho fazer o único gol contra a Inglaterra. E,
claro, nesse mesmo jogo, lembro da incrível defesa do goleiro inglês
para a cabeçada de Pelé. Finalmente, lembro-me da explosão que
este país viveu quando Carlos Alberto enfiou aquele último gol
contra a Itália, praticamente garantindo o título.
A
partir dali a gritaria foi geral, fogos pra todo lado e milhares e
milhares de pessoas nas ruas. Inclusive eu.
Peguei
o “trolebus”- um dos últimos que ainda operavam em Belo
Horizonte, e desci a rua do Ouro até a Aimorés, e daí para a
Afonso Pena: era um mar de gente.
Depois,
vivi as decepções de 74, de 78... Tive grandes esperanças com o
belo futebol das seleções de 82 e 86. Em 1990, se vivi mais uma
tristeza, vivi também a diversão de torcer para a Alemanha contra a
Argentina.
Voltamos
a ser campeões em 94, com o sabor adicional de uma disputa de
pênaltis. Passamos pela traumática Copa de 98 e novamente vibramos
em 2002.
Em
2002 eu morava em Brasília, e me lembro dos aviões da FAB
escoltando o avião da seleção passando baixinho sobre a minha
casa, que ficava na rota do aeroporto internacional de Brasília.
Em
2006 e 2010, voltamos a tropeçar em momentos decisivos, como já
havia acontecido, por exemplo, em 82 e 86.
Entre
uma e outra dessas duas últimas Copas do Mundo, tivemos a notícia
de que sediaríamos, outra vez, um campeontao mundial.
Não
éramos mais o país de 1950. Já não tínhamos mais complexo de
viralatas, como gostava de dizer Nelson Rodrigues. Afinal, estávamos,
desde 62, “atolados na mais brutal euforia”, como disse o próprio
em uma histórica e emocionante crônica. Bicampeões mundiais não
tinham mais nada a provar aos europeus, ou a quem quer que seja,
dentro de um campo de futebol. Que dirá, então, de pentacampeões.
Entretanto,
mesmo em 2007, quando o projeto da Copa do Mundo no Brasil se
confirmava, com total apoio do governo Luís Inácio Lula da Silva,
tínhamos muito a provar a nós mesmos.
O
governo adotou o discurso ufanista, novamente vinculando o futebol à
política, prática comum, como se viu, tanto à ditadura militar
quanto aos governos “de esquerda”. Lula bravateava o “Brasil
Grande”, o “Nunca Antes na História deste país”, e tudo mais.
O momento econômico era favorável, muito mais graças aos preços
internacionais das comoditties do que propriamente por ações
significativas do governo. Mas, boa parte dos brasileiros embarcou
nessa ideia.
E
não seria uma ideia de todo má. Era uma grande oportunidade para
nós. Grande oportunidade para mudarmos ou melhorarmos muita coisa
neste país. Grande oportunidade para os negócios, para a população
que poderia contar com os benefícios das obras de mobilidade urbana
e outras, atingindo de maneira importante a qualidade de vida de
milhões de brasileiros; grande oportunidade para nos acostumarmos
com planejamento, com objetivos claros, com metas.
A
FIFA, mal ou bem, nos trazia uma contribuição que poderia ser muito
relevante: aprendermos de vez a realizar o que projetamos, de
enxergar as iniciativas em parceria do estado e das empresas, não só
como negócios, mas como gerando riqueza e bem-estar para a
população, como aconteceu em diversas oportunidades na Europa.
Mas,
não foi o que se viu. Aplicamos à organização e montagem da Copa
do Mundo tudo que temos de pior: corrupção, descaso com recursos,
descompromisso, burocracia, e tudo mais que conhecemos tão bem... há
séculos.
Hoje,
vivemos esse momento estranho, essa alegria com gosto amargo, essa
vergonha que aparece nas redes sociais, de sermos o país que ama o
futebol, o país que é brilhante e empolgante dentro de campo; mas
que também é decepcionante fora dele. Sermos o país do futebol não
faz de nós um país melhor para vivermos nele.
Que
fique a lição: os campos de futebol são e serão sempre de todos
nós, brasileiros, que amamos este jogo. Nós brasileiros que, como
amantes e praticantes desse jogo, temos e teremos sempre o direito de
nos “atolarmos na mais brutal euforia”. Nós brasileiros que nos
deslumbraremos novamente com esta bela arte, desta vez tão perto de
nós.
Torceremos,
sofreremos em cada lance, nos deslumbraremos com alguns dos melhores
jogadores do mundo, aqui, em nossos gramados, na vizinhança. E quem
sabe ergueremos novamente essa taça tão nossa conhecida... Tão
conhecida que estará sempre em casa, por aqui.
Mas,
sabemos, agora de forma muito evidente, muito mais concreta – sem
trocadilho! - que ainda temos um país melhor para construirmos, para
nós mesmos. E isso não virá do talento futebolístico: virá da
cidadania efetiva. Essa, é uma Copa que ainda não vencemos.
Murilo
Cisalpino
Junho
de 2014