Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

domingo, 8 de dezembro de 2013

A MOÇA DOS ÓCULOS

A MOÇA DOS ÓCULOS

Da janela embaçada do ônibus ela observava a cidade espreguiçando sua manhã molhada. Carros levantavam pequenas esteiras de água, chiando em busca de seu destino. O velho encurvado sobre o fino paletó resmungava talvez pelo esquecimento do guarda-chuva.
Ela tira os olhos da rua por um momento e acompanha os dedos até a pequena sombrinha japonesa florida. “Tia Aparecida”? “Aniversário do ano passado”?
Volta a cabeça novamente para a janela. Fecha os olhos por um momento e recosta a fronte no vidro. Depois brinca com o vapor da janela, desenhando corações.
Tem os cabelos compridos e trançados, de um negro profundo como o asfalto. Os óculos de armação amarela estão colados, na haste direita, com fita adesiva transparente. Talvez ela esteja indo até uma ótica, no centro da cidade.
O solavanco do ônibus em mais um buraco faz com que os óculos saiam do lugar. A mão, rápida em tentar segurar-se no banco da frente, acerta a nuca do passageiro que olha e sorri: ela abaixa a cabeça e ajeita os óculos. Ele certamente não ouviu o murmúrio de desculpas.
Sua blusa de malha verde contorna os seios pequenos sem entretanto revelar seus detalhes. A gola está desfiando na frente. Talvez ela esteja indo a uma das liquidações, tão comuns nesta época, no centro da cidade.
Seu olhar agora se volta para o outdoor gigantesco onde um cidadão em seu terno elegante vende as virtudes improváveis de um banco do Estado. Ela observa o anúncio mas parece não vê-lo. Seus olhos desfocam-se em devaneios e sua alma parece flutuar sobre os prédios.
Ela talvez esteja pensando no trabalho, em como será seu dia na... loja? escritório? Escola ? supermercado?
Maria das Tranças será Maria da Glória ou Renata ou Roberta ou Letícia ou Cinara ou Lorena Leocádia ou Estela Maris ou Geralda Magela ou Marta Márcia Marina Melissa Morena dos Óculos Amarelos...
O ônibus entra na grande avenida e ela acorda do transe profundo. Um olhar para a quadra seguinte e procura a campainha. Com o ônibus ainda em movimento, ela levanta-se, ajeita a blusa e a saia, joga uma das tranças para trás, abraça a bolsinha de plástico e prepara a sombrinha primaveril. Chovia e chovia.

Com seu andar tímido e quase flutuante, como quem não quer ser vista jamais. Como quem quer desaparecer de si mesma, ela desce do ônibus e rapidamente se perde no labirinto urbano. Se perde do meu olhar, talvez para sempre, no vendaval de concreto e carne da cidade.