A
MOÇA DOS ÓCULOS
Da
janela embaçada do ônibus ela observava a cidade espreguiçando sua manhã molhada. Carros levantavam pequenas esteiras de água, chiando
em busca de seu destino. O velho encurvado sobre o fino paletó
resmungava talvez pelo esquecimento do guarda-chuva.
Ela
tira os olhos da rua por um momento e acompanha os dedos até a
pequena sombrinha japonesa florida. “Tia Aparecida”? “Aniversário do
ano passado”?
Volta
a cabeça novamente para a janela. Fecha os olhos por um momento e
recosta a fronte no vidro. Depois brinca com o vapor da janela,
desenhando corações.
Tem
os cabelos compridos e trançados, de um negro profundo como o
asfalto. Os óculos de armação amarela estão colados, na haste
direita, com fita adesiva transparente. Talvez ela esteja indo até
uma ótica, no centro da cidade.
O
solavanco do ônibus em mais um buraco faz com que os óculos saiam
do lugar. A mão, rápida em tentar segurar-se no banco da frente,
acerta a nuca do passageiro que olha e sorri: ela abaixa a cabeça e
ajeita os óculos. Ele certamente não ouviu o murmúrio de
desculpas.
Sua
blusa de malha verde contorna os seios pequenos sem entretanto
revelar seus detalhes. A gola está desfiando na frente. Talvez ela
esteja indo a uma das liquidações, tão comuns nesta época, no
centro da cidade.
Seu
olhar agora se volta para o outdoor gigantesco onde um cidadão em
seu terno elegante vende as virtudes improváveis de um banco do
Estado. Ela observa o anúncio mas parece não vê-lo. Seus olhos
desfocam-se em devaneios e sua alma parece flutuar sobre os prédios.
Ela
talvez esteja pensando no trabalho, em como será seu dia na... loja?
escritório? Escola ? supermercado?
Maria
das Tranças será Maria da Glória ou Renata ou Roberta ou Letícia
ou Cinara ou Lorena Leocádia ou Estela Maris ou Geralda Magela ou
Marta Márcia Marina Melissa Morena dos Óculos Amarelos...
O
ônibus entra na grande avenida e ela acorda do transe profundo. Um
olhar para a quadra seguinte e procura a campainha. Com o ônibus
ainda em movimento, ela levanta-se, ajeita a blusa e a saia, joga uma
das tranças para trás, abraça a bolsinha de plástico e prepara a
sombrinha primaveril. Chovia e chovia.
Com
seu andar tímido e quase flutuante, como quem não quer ser vista
jamais. Como quem quer desaparecer de si mesma, ela desce do ônibus
e rapidamente se perde no labirinto urbano. Se perde do meu olhar, talvez para sempre, no vendaval de
concreto e carne da cidade.