BOM
DESCANSO, AMIGO
Sentamos
aqui os dois, no sofá da sala, bebericando alguma coisa e
relembrando todos os momentos que vivemos juntos. O papo é fácil,
corre tranquilo, como é comum aos velhos amigos e irmãos. Olho pra
ele, entre uma risada e outra, e reparo como ele envelheceu. Não
parece cansado, mas em seus olhos pude perceber o quão intensa tem
sido sua vida.
Na
verdade, sendo filho de quem é, imagina-se, ou ainda, depreende-se
essa intensidade, esse misto de fugacidade e permanência: tudo passa
tão rápido, mas é para sempre. Deste segundo, para a eternidade.
Um rabisco, um átimo, um piscar de olhos, um leve sorriso: tudo isso
se inscreve nos ossos do universo.
Nem
sempre percebemos essa dimensão de nossas vidas. Muitas vezes nos
tornamos reféns dos grandes gestos, dos episódios monumentais, das
grandes emoções; e não percebemos que a vida está acontecendo
aqui mesmo, neste bebericar em que ficamos, no doce olhar que
encontro no meu cãozinho ao lhe dar um petisco. Na lembrança de
minha avó, quando frito um bife. No cheiro de dama da noite que vem
com a brisa, neste momento.
Eternos,
todos eles eternos, o imenso e o comum, irmanados pela singularidade
da existência e, portanto, igualmente fundamentais e inesquecíveis.
E por isso igualmente belos e caros.
Meu
velho amigo brinca com suas próprias lembranças, e conta de tantos
lugares que conheceu neste mundo, que eu provavelmente só verei por
suas palavras, e eu me lembro de Louis Armstrong, enquanto ele conta.
E
enquanto ele narra seus dias, me lembro dos meus dias com ele.
Com ele,
conheci centenas de novas pessoas. Pessoas lutando, muitas vezes
contra o cansaço, contra as dificuldades econômicas e muitas vezes
deixando os filhos em casa e tendo que lidar com a saudade e a culpa.
Muitas vezes carregando a esperança de uma família inteira. Pessoas
em busca de si mesmas, com seus olhos famintos, brilhantes de vontade
e energia. Gente que carrega o próprio futuro, dentro de olhos tão
jovens.
Com ele
degustei um vermelho-laranja, salpicado de dourados e prata, regato a
vento no rosto, no céu desta cidade. Carrego aquela beleza, desde de
então, nos meus olhos, feliz de saber que todo o firmamento pode
caber, tantas vezes, dentro de mim.
Com ele
chorei partidas e chegadas. Com ele me surpreendi com gestos
terríveis dos seres humanos, e refletimos sobre a capacidade que
temos de levar a maldade e o egoísmo ao mesmo extremo em que levamos
a caridade e a solidariedade.
Aprendi
como a irresponsabilidade e o deslumbramento dos outros pode afetar
sua vida, mas que é preciso continuar fazendo o seu melhor, mesmo
assim.
E
relembrei, com ele, que você é ninguém, sem sua família e seus
amigos.
Tantas
manhãs, tantos dias... tantas vezes, o mesmo sol surgiu, como nunca
surgirá mais, na história do universo. Abençoada rotina que os
deuses nos permitem.
Tantas
noites quentes, embaladas pelas conversas com a minha companheira,
com meus cachorrinhos, tecendo a teia dos meus dias no aconchego de
casa. Costurando o dia que foi, planejando os pontos e desenhos
futuros: e nada melhor que fazer isso onde você se sente mais seguro
e querido.
Relembro
um dos nossos dias mais divertidos, juntos, e ele sorri,
acrescentando detalhes dos quais já não me lembrava.
Guerras,
mortes, nascimentos, heroísmo, hipocrisia, nobreza...vimos muita
coisa juntos, amigo. O melhor e o pior da humanidade. E o que somos é
apenas o que filtramos disso tudo. Simples assim: façam suas
escolhas.
É hora
de ele me deixar sozinho, com as escolhas que eu fiz. É hora de
outro amigo chegar, para as escolhas que farei. E um dia nos
sentaremos também, eu e este velho novo amigo que chega. Seu olhar
de criança não me engana: ele também é um filho do tempo. E essa
“gente” arrasta milênios entre os dedos das mãos.
Mas,
hoje, é dia de agradecer. Obrigado, 2013. Levo você comigo, assim
como espero ter deixado algumas lembranças em seus dias. Um dia
voltaremos a nos ver no colo do pai, meu irmão.