Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

SOBRE CRIANÇAS E ATUNS

SOBRE CRIANÇAS E ATUNS



Certa vez, fui surpreendido por uma solicitação da escola em que meu filho estudava, em Belo Horizonte: eu deveria comparecer assim que possível para que a coordenação me fizesse ciente de problemas com o garoto por lá.
E fui. O problema é que ele tinha ido à escola sem a camiseta da escola, que era de uso obrigatório. E além disso, havia discutido com os funcionários da escola sobre o direito que ele tinha de assistir às aulas, mesmo estando sem o dito uniforme. E mais: se recusava a usar o mesmo.
O coordenador explicou a obrigatoriedade do uniforme e o objetivo dele. Entre outras coisas, disse que o objetivo do uniforme era para maior controle dos funcionários sobre quem entrava e saia da escola. E na rua, para identificá-los como estudantes e coisa e tal. Claro que não comentou que era também uma forma de propaganda da escola - propaganda paga pelos pais. E muito menos usou um velho argumento que eu já ouvira em outras plagas: o uniforme escolar evita que os alunos transformem a escola num “desfile de modas”. Evita que alunos menos abastados se sintam constrangidos pelas roupas “de marca”, dos colegas montados na grana.
Conversando com o garoto, perguntei porque não estava com o uniforme. Respondeu que estava com o uniforme na mochila. Estranhei. Perguntei, já bastante curioso: se está com ele aí por quê não usou? Resposta: “Não sou lata de atum”.
Ao ouvir aquilo, conclui que o garoto tinha me pegado, e que demandaria tempo e saliva convencê-lo a usar o tal uniforme.
Acontece que, por trás da frase “não sou lata de atum”, estão alguns princípios e ideias com as quais eu concordo.
Quando eu era “o garoto”, e depois “o adolescente”, tinha ouvido, na escola em que eu estudava, também em Belo Horizonte, o argumento de que o uniforme, de alguma forma, evita que se estabeleça uma “luta de classes” na escola. As diferenças socioeconômicas, da “vida lá fora”, não seriam trazidas para o ambiente escolar, onde todos seriam “iguais”...
Ora, isso é uma besteira gigantesca. É uma daquelas mentiras confortáveis, que as pessoas gostam de contar e acreditar.
Se as diferenças sociais não vinham pelas roupas, vinham pelo material escolar, vinham pelo carro ou ônibus que levava os alunos depois da aula. Vinha pela casa dos alunos, quando íamos fazer um trabalho ou quando era o aniversário de alguém. Ou simplesmente pelos assuntos, pelos temas de conversa, e principalmente, pelas “rodinhas”, pelos grupinhos que se formavam a partir dos sistemas de identificação que os próprios alunos construíam.
Meu pai sempre fez questão que estudássemos “nos melhores colégios”. Educação, pra ele, que também foi professor, sempre foi assunto prioritário. Com seis filhos, o esforço que a família fazia para manter todos nos “melhores colégios” também era muito grande.
Fiz o correspondente ao fundamental em um colégio particular de BH, e me orgulho muito disso: tanto pelo esforço de minha família em me oferecer o que considerava o melhor, quanto pelo colégio, que me ajudou a construir a base de toda a vida escolar.
Mas o colégio tinha muita gente rica. E claro que nós, os mais pobres, não frequentávamos as rodas dos mais ricos. Me lembro do aniversário de uma garota, colega de turma: ela convidou a todos, mas era da turminha dos pobres, e as meninas mais ricas boicotaram o aniversário dela.
Meu pai me levou até a casa dela, no dia do aniversário. Cheguei, educadamente, com o presentinho nas mãos. A garota estava sentada na porta da casa. Sozinha. Chorando. Eu fui o único colega de turma no aniversário dela. Único.
Eu tinha muitos colegas, mas poucos amigos. Os poucos, eram os “pobres”.
Em casa, meus pais nunca deram muita importância a isso. Nunca deram valor ou destaque às pessoas pelo que elas tinham, em termos materiais ou financeiros. Meu pai me apresentava às pessoas que respeitava mais ou menos assim: “Este é o professor Fulano, um dos maiores pesquisadores do país”... Ou assim: “Este é o Sicrano. É uma das pessoas de melhor caráter que eu conheço”. Assim também: “Este é Beltrano, Toca um berrante como ninguém”. Algumas vezes, o sujeito em questão era também rico, mas nunca foi um valor por si só.
Aprendi a dar valor às pessoas, ao que elas eram. E não ao que elas tinham. Inclusive a dar valor a quem ficava ou era rico por seu esforço e talento: nunca me senti roubado ou menor do que alguém que tinha ou tem dinheiro. Aprendi que talentos são vários e valiosos: do pescador inventivo, do vaqueiro dedicado, do motorista confiável, ao empresário brilhante.
Há poucos dias, uma mulher me pediu dinheiro na rua. Respondi: “não tenho nada no momento, minha senhora”. Uma pessoa ao meu lado, riu muito e disse debochado: “senhora”? Tive pena do pobre rapaz, que não compreendeu que o meu respeito é dirigido às pessoas, não a sua condição social.
Ainda hoje, é assim que eu olho para as pessoas: elas me impressionam pelo talento ou pelo caráter. Dinheiro é só a capa. E ninguém lê apenas capas: o que importa está nas páginas.
“Ah, mas não é assim que o mundo é”: ora, se o mundo como ele é merecesse tanto respeito, não haveria tanta gente querendo mudá-lo, não é?
Enfim, as pessoas e as instituições dirigidas pelas pessoas, tentam mascarar o mundo para as crianças, enquanto elas estão inseridas nele, vivem nele, e reproduzem nele sua própria humanidade. Crianças cobiçarão o lápis com borracha de Mickey do coleguinha. Crianças invejarão a popularidade de outras, ou o cabelo das outras, ou a bola bacana das outras. Adolescentes cobiçarão o boné, ou a mochila. Invejarão o namorado ou a namorada. Ou a falta de espinhas de alguém.
Crianças, adolescentes, adultos: são todos pessoas, são todos humanos e não há como preservá-los disso ou daquilo. A vida não respeita os muros da escola porque ela é a escola. A vida não poupa quem esteja de uniforme. Não poupa ninguém: estamos mergulhados no mesmo caldo. A biosfera é nosso aquário. Não há onde se esconder. A escola não vai proteger ninguém. O estado menos ainda. São ambos construções humanas: pessoas controlam as instituições. Pessoas controlam pessoas. Por isso, prefiro eu mesmo definir meus caminhos e ter claras, para mim, as minhas opções – é isso que me torna mais ou menos livre.
Há como se preparar. Há como esclarecer os valores e as ideias que fundamentam nossas opções diante da vida, Há como explicar aos filhos, aos amigos, a quem quer que seja, quais são os seus valores, no quê você acredita, e que abrir mão disso é abrir mão da sua vida, da vida que você pode escolher – é abrir mão da sua liberdade de ser quem quer ser. Somos o resultado de nossas escolhas e de nossos silêncios – que também são escolhas.
Realmente, e definitivamente, não somos atuns. Não há rótulo ou embalagem que nos contenha. Somos contidos apenas pelas redes que nós mesmos tecemos.

Somos um coletivo de singularidades. Nossa grandeza e nossa tragédia reside em nossas diferenças.