SOBRE
CRIANÇAS E ATUNS
Certa
vez, fui surpreendido por uma solicitação da escola em que meu
filho estudava, em Belo Horizonte: eu deveria comparecer assim que
possível para que a coordenação me fizesse ciente de problemas com
o garoto por lá.
E fui. O
problema é que ele tinha ido à escola sem a camiseta da escola, que
era de uso obrigatório. E além disso, havia discutido com os
funcionários da escola sobre o direito que ele tinha de assistir às
aulas, mesmo estando sem o dito uniforme. E mais: se recusava a usar
o mesmo.
O
coordenador explicou a obrigatoriedade do uniforme e o objetivo dele.
Entre outras coisas, disse que o objetivo do uniforme era para maior
controle dos funcionários sobre quem entrava e saia da escola. E na
rua, para identificá-los como estudantes e coisa e tal. Claro que
não comentou que era também uma forma de propaganda da escola -
propaganda paga pelos pais. E muito menos usou um velho argumento que
eu já ouvira em outras plagas: o uniforme escolar evita que os
alunos transformem a escola num “desfile de modas”. Evita que
alunos menos abastados se sintam constrangidos pelas roupas “de
marca”, dos colegas montados na grana.
Conversando
com o garoto, perguntei porque não estava com o uniforme. Respondeu
que estava com o uniforme na mochila. Estranhei. Perguntei, já
bastante curioso: se está com ele aí por quê não usou? Resposta:
“Não sou lata de atum”.
Ao ouvir
aquilo, conclui que o garoto tinha me pegado, e que demandaria tempo
e saliva convencê-lo a usar o tal uniforme.
Acontece
que, por trás da frase “não sou lata de atum”, estão alguns
princípios e ideias com as quais eu concordo.
Quando eu
era “o garoto”, e depois “o adolescente”, tinha ouvido, na
escola em que eu estudava, também em Belo Horizonte, o argumento de
que o uniforme, de alguma forma, evita que se estabeleça uma “luta
de classes” na escola. As diferenças socioeconômicas, da “vida
lá fora”, não seriam trazidas para o ambiente escolar, onde todos
seriam “iguais”...
Ora, isso
é uma besteira gigantesca. É uma daquelas mentiras confortáveis,
que as pessoas gostam de contar e acreditar.
Se as
diferenças sociais não vinham pelas roupas, vinham pelo material
escolar, vinham pelo carro ou ônibus que levava os alunos depois da
aula. Vinha pela casa dos alunos, quando íamos fazer um trabalho ou
quando era o aniversário de alguém. Ou simplesmente pelos assuntos,
pelos temas de conversa, e principalmente, pelas “rodinhas”,
pelos grupinhos que se formavam a partir dos sistemas de
identificação que os próprios alunos construíam.
Meu pai
sempre fez questão que estudássemos “nos melhores colégios”.
Educação, pra ele, que também foi professor, sempre foi assunto
prioritário. Com seis filhos, o esforço que a família fazia para
manter todos nos “melhores colégios” também era muito grande.
Fiz o
correspondente ao fundamental em um colégio particular de BH, e me
orgulho muito disso: tanto pelo esforço de minha família em me
oferecer o que considerava o melhor, quanto pelo colégio, que me
ajudou a construir a base de toda a vida escolar.
Mas o
colégio tinha muita gente rica. E claro que nós, os mais pobres,
não frequentávamos as rodas dos mais ricos. Me lembro do
aniversário de uma garota, colega de turma: ela convidou a todos,
mas era da turminha dos pobres, e as meninas mais ricas boicotaram o
aniversário dela.
Meu pai
me levou até a casa dela, no dia do aniversário. Cheguei,
educadamente, com o presentinho nas mãos. A garota estava sentada na
porta da casa. Sozinha. Chorando. Eu fui o único colega de turma no
aniversário dela. Único.
Eu tinha
muitos colegas, mas poucos amigos. Os poucos, eram os “pobres”.
Em casa,
meus pais nunca deram muita importância a isso. Nunca deram valor ou
destaque às pessoas pelo que elas tinham, em termos materiais ou
financeiros. Meu pai me apresentava às pessoas que respeitava mais
ou menos assim: “Este é o professor Fulano, um dos maiores
pesquisadores do país”... Ou assim: “Este é o Sicrano. É uma
das pessoas de melhor caráter que eu conheço”. Assim também:
“Este é Beltrano, Toca um berrante como ninguém”. Algumas
vezes, o sujeito em questão era também rico, mas nunca foi um valor
por si só.
Aprendi a
dar valor às pessoas, ao que elas eram. E não ao que elas tinham.
Inclusive a dar valor a quem ficava ou era rico por seu esforço e
talento: nunca me senti roubado ou menor do que alguém que tinha ou
tem dinheiro. Aprendi que talentos são vários e valiosos: do
pescador inventivo, do vaqueiro dedicado, do motorista confiável, ao
empresário brilhante.
Há
poucos dias, uma mulher me pediu dinheiro na rua. Respondi: “não
tenho nada no momento, minha senhora”. Uma pessoa ao meu lado, riu
muito e disse debochado: “senhora”? Tive pena do pobre rapaz, que
não compreendeu que o meu respeito é dirigido às pessoas, não a
sua condição social.
Ainda
hoje, é assim que eu olho para as pessoas: elas me impressionam pelo
talento ou pelo caráter. Dinheiro é só a capa. E ninguém lê
apenas capas: o que importa está nas páginas.
“Ah,
mas não é assim que o mundo é”: ora, se o mundo como ele é
merecesse tanto respeito, não haveria tanta gente querendo mudá-lo,
não é?
Enfim, as
pessoas e as instituições dirigidas pelas pessoas, tentam mascarar
o mundo para as crianças, enquanto elas estão inseridas nele, vivem
nele, e reproduzem nele sua própria humanidade. Crianças cobiçarão
o lápis com borracha de Mickey do coleguinha. Crianças invejarão a
popularidade de outras, ou o cabelo das outras, ou a bola bacana das
outras. Adolescentes cobiçarão o boné, ou a mochila. Invejarão o
namorado ou a namorada. Ou a falta de espinhas de alguém.
Crianças,
adolescentes, adultos: são todos pessoas, são todos humanos e não
há como preservá-los disso ou daquilo. A vida não respeita os
muros da escola porque ela é a escola. A vida não poupa quem esteja
de uniforme. Não poupa ninguém: estamos mergulhados no mesmo caldo.
A biosfera é nosso aquário. Não há onde se esconder. A escola não
vai proteger ninguém. O estado menos ainda. São ambos construções
humanas: pessoas controlam as instituições. Pessoas controlam
pessoas. Por isso, prefiro eu mesmo definir meus caminhos e ter
claras, para mim, as minhas opções – é isso que me torna mais ou
menos livre.
Há como
se preparar. Há como esclarecer os valores e as ideias que
fundamentam nossas opções diante da vida, Há como explicar aos
filhos, aos amigos, a quem quer que seja, quais são os seus valores,
no quê você acredita, e que abrir mão disso é abrir mão da sua
vida, da vida que você pode escolher – é abrir mão da sua
liberdade de ser quem quer ser. Somos o resultado de nossas escolhas
e de nossos silêncios – que também são escolhas.
Realmente,
e definitivamente, não somos atuns. Não há rótulo ou embalagem
que nos contenha. Somos contidos apenas pelas redes que nós mesmos tecemos.
Somos um
coletivo de singularidades. Nossa grandeza e nossa tragédia reside
em nossas diferenças.