Outro dia estava navegando pela internet, brincando com aqueles programas que nos mostram a Terra vista do espaço, por um satélite. A gente pode “mergulhar” na Terra, com esses programas, aproximando cada vez mais. A gente entra na atmosfera, começa a ver o traçado dos continentes e oceanos, depois a gente escolha um lugar qualquer do planeta. Eu escolhi o meu país. Depois a gente aproxima mais e identifica a posição do nosso estado. Aí, já dá pra começar a localizar a nossa cidade.
Com a
minha cidade já no alvo, comecei a ampliar mais a imagem. Vi os
bairros, as avenidas e ruas ainda pequenas. Aproximei mais, mais e
mais: e lá estava a minha rua. Eu podia reconhecer a minha casa, a
casa dos vizinhos, o comércio que existe no fim da rua. A minha
vontade era “mergulhar” mais ainda e poder ver as pessoas, os
animais, e até os buracos no asfalto que a minha rua tem. Mas a
ampliação da imagem já estava no limite. Então, fiquei ali,
olhando a minha rua com os olhos do espaço. Como se fosse um E.T
estudando o belo planetinha que risca de azul o sistema solar em sua
órbita.
Deixei
aquela imagem ali e fiquei observando, como quem vê pela primeira
vez algo que já conhece em detalhes. Então, não sei porque, me deu
uma vontade danada de sair de casa e fazer na minha imaginação, já
que não havia um foguete à mão, a viagem ao contrário: fui para a
rua, parei bem em frente ao meu portão, olhei para a rua toda.
Depois, olhei para o céu, e voei: decolei em direção ao satélite
que pouco antes me mostrava as imagens do meu planeta.
Olhando
pra baixo, vi as ruas diminuindo, as pessoas virando formigas. Vi
toda a beleza da geografia da região onde vivo; vi o meu país se
formando lá embaixo, vi o oceano aparecendo, vi o meu continente, os
outros oceanos, os outros continentes... até sair da atmosfera e
poder ver o meu planeta. Fui até o satélite, sentei em uma de suas
antenas – com cuidado pra não quebrar nada (acho que isso deve ser
de um gringo qualquer)... E suspirei diante da beleza da minha Terra,
do meu lugar nesse imenso universo.
Se você
está aí rindo de mim, ou se perguntando como é que eu posso
suspirar e respirar no espaço, já que sua professora de ciências
disse que no espaço não tem ar, por que lá existe o vácuo eu te
respondo: na imaginação, a gente pode tudo. Pra te provar isso,
vou dizer que, sentado na antena do satélite, ainda tirei meu
canivete do bolso e chupei uma laranja (colhida de uma laranjeira que
imaginei nos painéis solares da estação espacial internacional),
enquanto tentava identificar se aquele traçozinho, aquela pequena
cicatriz que via na superfície do meu planeta era a Grande Muralha
da China ( será?)
Então,
olhei pra trás e contemplei a Lua, ali pertinho, os outros planetas
do sistema solar (não olhei para o sol porque não tinha levado meus
óculos escuros nem meu negativo de filme fotográfico). Vi bilhões
de corpos celestes: estrelas, cometas, meteoros... pensei ter visto
dois discos voadores e um buraco negro... Vi também a quantidade
impressionante de lixo espacial em volta da Terra... Pensei
maravilhado: eu estou lá na minha casa, na minha rua, na minha
cidade, no meu país, no meu continente, no meu planeta... MAS... Sou
mesmo é um habitante do universo! Meu lar é tão grande, tão
grande, mas tão grande, que a gente acha que ele é infinito. Isso
me fez sentir estranho: muito pequeno, por ser apenas um euzinho
minúsculo no meio desse imenso universo... e muito grande, por ser
um euzinho que pode vir a conhecer esse mesmo imenso universo.
Recolhi
todas essas imagens pra dentro da minha cabeça e do meu coração (a
imaginação tem um duplo lar em nós) e voltei o olhar pra minha
rua. Aquele cachorrinho que passava tranquilamente, já não era o
mesmo. O menino, meu vizinho, que me acenava da janela, já não era
o mesmo. A minha rua, a minha rua simples e comum, como outros
milhões de ruas pelo mundo, não era mais somente a minha rua: era
um pedaço do universo. Era, na verdade, um universo dentro do
universo. E esse universo tão mais próximo, era igualmente complexo
e deslumbrante. E eu decidi explorá-lo.
Comecei
minha exploração pelo mercadinho do “seu” Alfredo, que fica lá
na ponta da rua, na esquina com a avenida que nos leva ao coração
da cidade. Podemos com certeza dizer que ver o mercadinho do seu
Alfredo é a alegria de chegar em casa, pra quem vem da cidade, e a
pontinha de saudade de casa, quando se vai pra cidade. É a esquina
do meu cotidiano, o mercadinho.
O
mercadinho funciona em uma antiga garagem, convertida e ampliada para
loja pelo dono que está morando nos EUA há dez anos – manda
dinheiro de lá para os pais, que moram no andar de cima do
mercadinho, e vivem da renda do imóvel. Tem verdura na porta,
fresquinha, logo de manhã. Tem pão e leite. Tem aquela mortadela
que eu adoro. Tem uma maquininha de balas. Tem uma caixa registradora
antiga, mas que ainda funciona. Tem macarrão, farinha, feijão,
arroz e carnes congeladas. Tem caderno, lanterna, sabão, limão,
CD-Rom gravável, ração, alpiste, pimentão, leite condensado,
batata chips. Tem também botina “rangideira” e fumo de rolo. Nos
rótulos dos produtos tem: São Paulo, Belo Horizonte, Rio de
Janeiro, Buenos Aires e São João das Roças Lindas (que fica aqui
pertinho).
E tem o
seu Alfredo. Seu Alfredo é um mulato de olho verde, filho de um
negro nordestino com uma loura francesa, neto de portugueses, índios,
escravos e poetas. Seu Alfredo era o Brasil, era o mundo em forma de
gente. Seu Alfredo falava mineirês (não sei se disse, mas moro em
Minas Gerais, um “Mar de Morros” afogado em gente hospitaleira e
gentil) com sotaque brasileiro, o que lembrava de longe o português.
De vez em quando, recitava poetas franceses ou cordéis nordestinos:
seu preferido era “A chegada de Lampião no Inferno”, que era
muito engraçado.
Seu
Alfredo nunca tinha viajado mais longe que alguns poucos quilômetros,
mas trazia o mundo na alma, na pele. Sabia de Áfricas e Quilombos e
Paris.
Entrou
no mercadinho a Dona Rosa, pra comprar umas verduras pro almoço. Fui
com ela, caminhando até sua casa, pra carregar a sacola. Dona Rosa
já coleciona muita vida nos ombros, seus olhos são oásis de vida e
quando ela olha pra gente um sorriso nasce em nossos corações.
Dona
Rosa morava no outro extremo da rua, do lado oposto ao mercadinho, em
uma casa antiga, mas bem conservada, com uma jardineira de margaridas
na janela da frente. Dona Rosa, a primeira moradora da rua, diz que
já viveu quase de tudo: nasceu em uma fazenda, cresceu cozinhando e
lavando, casou na cidade, trabalhou em fábrica e em loja, viu a
primeira locomotiva e viu também a primeira transmissão de
televisão chegarem à sua cidade. Viu em preto-e-branco, o primeiro
homem na Lua; e comprou o primeiro telefone celular da rua. Dona Rosa
à vezes tem um tom de tristeza na voz: tem saudades do marido, que
já se foi. Tem saudades dos filhos, que moram longe. Tem saudades
dos netos que lhe mandam retratos e e-mails (Dona Rosa ganhou um
computador do filho mais velho e aprendeu a usá-lo com o neto mais
novo, que tem uma paciência danada com ela).
A casa
de Dona Rosa tem muitos retratos e cheiro de memória.
Deixei
as sacolas de verduras na casa de Dona Rosa e vi o Marquinhos, meu
amigo, sentado no meio-fio, fazendo bolha de sabão. Tinha um tempão
que eu não via alguém fazendo bolha de sabão. E fui lá, furar
umas bolhas, é claro.
Marquinhos
é um menino franzino, de óculos, com rosto cheio de sardas, muito
branco, muito pálido. Morava na terceira casa a partir da minha, bem
no meio da rua. A casa do Marquinhos, na verdade, era um pequeno
condomínio: a casa original, de seus avós, havia sido dividida em
três residências independentes. Em uma delas, morava o Marquinhos e
seus pais, nas outras, seus dois tios com as famílias.
O pai de
Marquinhos era engenheiro da empresa mais importante da cidade. Havia
se formado há pouco tempo. Começara como um simples operário, mas,
apesar de já ter família, batalhou muito, trabalhando durante o dia
e estudando à noite, até se formar. Agora, ganhava muito melhor e
tinha o carro mais novinho da rua.
Já o
Marquinhos, sonhava em ser especialista em computadores. Passava
quase todo seu tempo livre fechado no quarto, navegando na internet
ou aprendendo a usar os programas mais complicados que o pai dele
tinha.
Do outro
lado da rua, também observando o Marquinhos estava o Carlão,
sujeito meio esquisito, que não fazia nada da vida. Já com seus
trinta anos, vivia ainda na casa da mãe e se vestia como um
adolescente. O tempo todo de boné, bermuda e chinelo. Passava os
dias pelos bares, jogando sinuca e bebendo. A mãe do Carlão era
costureira, uma das melhores do bairro. Fazia de tudo, até vestido
de noiva. Era ela quem sustentava o Carlão.
A casa
do Carlão era mal cuidada, o portão estava velho e solto, caia toda
hora. O telhado estava lotado de folhas, que caiam do ficos que havia
no pequeno jardim, em frente à casa. A mãe dele não tinha tempo
para manter a casa arrumada, e o Carlão parecia não se importar com
isso. De vez em quando, olhava pra casa e dizia: “Amanhã eu vou
arrumar isso aí”. Mas, amanhã nunca chegava.
Caminhando
em direção à minha casa, olhava pra minha rua: casa dos Pereira...
Casa da Mônica... Casa daquele vizinho que não conversava com
ninguém... O terreno baldio... O predinho onde mora o Paulo, meu
amigo... Eu caminhava e pensava em toda aquela gente. Gente de todo
lugar, gente de todas as idades, gente que ia e vinha. Eu caminhava e
pensava que ali naquela rua, não havia limite para histórias, para
vontades, para desejos, para alegrias e tristezas. Não havia limite
para o futuro, para mudanças que ainda poderiam ocorrer, com o
passar dos anos.
Olhei
para a rua novamente, mas agora com meus olhos da imaginação: e vi
que minha rua não terminava na avenida que levava à cidade. Minha
rua se ligava a uma estrada invisível que levava ao infinito. Minha
rua era pequena, é verdade, mas era uma parte desse mundo, estava
conectada ao planeta e corria muito além, serpenteando pelo
universo, entre os mesmos satélites, estrelas, cometas, planetas,
galáxias que eu imaginara ainda há pouco...
E assim,
olhando pra lugar nenhum e para todos os lugares, cheguei a uma
conclusão: não há nada que possa limitar as pessoas. Nem casas,
nem ruas, nem cidades, nem mundos. Nosso único limite está no
tamanho que queremos ter.
Murilo Cisalpino