Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

domingo, 1 de novembro de 2015

ODISSEIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 12 - NA ROLETA DA VIDA

NA ROLETA DA VIDA

Estava no ônibus, outro dia, de Timóteo para Ipatinga. Final de uma tarde do final de outubro. Mais um dia, tudo como sempre, inclusive as situações especiais: de especial, havia o fato de estar indo substituir um colega, que havia sido internado. Mas isso aconteceu muitas vezes, ao longo do ano, trazendo a dupla sensação de alegria, por poder ajudar e preocupação, com o estado de saúde do colega. E de especial, havia também a impressão de entrar em dois lugares, quando entro em Ipatinga: a entrada de Ipatinga me lembra muito Brasília e sempre penso nisso, quando entro na cidade. É sempre como se estivesse entrando em duas partes de minha vida ao mesmo tempo e as memórias se misturam, como se lambesse um sorvete napolitano feito de emoções e histórias.
Era um dia de sentimentos especialmente envolvidos pela normalidade. O sol ainda brilhava às 18 horas, devido ao horário de verão. Mais uma normalidade com sabor especial. Normalmente extraordinário, esse dia.
O ônibus seguia seu trajeto normal, com seus barulhos normais e eu, como normalmente faço, me distraia com o ir e vir da cidade, lá fora. A moça de chapéu, o carro caríssimo, o garoto suicida correndo entre carros, a flor do shopping, o cheiro da usina: tudo como sempre. E eu pensava que nada dessa normalidade ocorreria outra vez, na história da humanidade. Pequenos e banais momentos únicos do universo passando pela janela.
De repente, não mais que de repente, escuto um pequeno gemido, longo e doído, dentro do ônibus. Procurei ver de onde vinha aquela ruído anormal que invadia a minha normalidade: era o trocador. Quando olhei, ele dava um impulso para a frente, levantava a cabeça, tentava segurar-se nas barras laterais e emitia outro gemido, ainda mais gutural e doloroso. Em seguida, suas mãos e braços se retorcerem, suas pernas se esticaram. Ele começou a cair da cadeira, totalmente retorcido, debatendo-se levemente, e salivava profusamente.
As pessoas, no ônibus, se espantaram, imediatamente gritaram para o motorista que o trocador estava passando mal, pedindo para parar. Algumas se aproximaram, na vontade de ajudar. Mas paravam diante do quadro: um homem, adulto, todo contorcido, debatendo-se e "babando". Não é fácil dar o próximo passo.
Sem hipocrisias: não é fácil dar o próximo passo. O que lhe vem à cabeça? "Será contagioso"? Por mais que você seja uma pessoa sempre disposta a ajudar, é isso que você pensa. E contem, ainda que seja por segundos, o próximo passo. Somado a outras dúvidas, por exemplo: "como eu posso ajudar, não sei o que está acontecendo", ou "não sei o que fazer, melhor ficar quieto". É natural, é humano, é compreensível.
Não era o caso de uma jovem senhora, que se aproximou, com ares de quem sabia o que fazia: "Deixa, deixa..." e tomou conta da situação. Não era o meu caso também, já tinha visto aquele quadro diversas vezes. Eu disse a ela: "Você precisa de ajuda"?
E fomos seguindo os procedimentos indicados: afrouxamos a gravatinha, a camisa, o cinto. Desfizemos o "bolinho" e ganhamos espaço. Levantamos o rapaz, que ameaçava cair da cadeira e o colocamos em uma posição mais segura e confortável. Os dentes não estavam cerrados e ele não mordia a língua. Retiramos objetos pessoais que pudessem se perder, quebrar ou feri-lo: óculos, telefone, carteira, etc. Alguém ligou para o SAMU pedindo uma ambulância.
O trocador se debateu por mais alguns segundos e começou a parar...Deu um profundo suspiro e depois permaneceu quieto, olhos fechados...e ofegava. O cansaço e a confusão mental seriam os próximos passos esperados.
Mais alguns minutos e ele começava a voltar: abriu os olhos. A moça falou com ele, perguntou o nome e a idade. O olhar era vazio, olhava mas não entendia o que via. O cansaço era profundo e quase mais consternador do que a convulsão. Ele estava exausto.
Ficamos ali, ao lado dele, por mais alguns minutos. Ele foi voltando. Respondeu o nome, mas ainda não sabia a idade nem onde estava. A primeira resposta à pergunta "quantos anos você tem"? foi "13 anos".
Foi nesse momento que pude tomar pé do que acontecia em volta. O ônibus estava parado no canto direito da avenida, logo em frente a um posto de gasolina, depois do shopping do vale. Eu estava a uns 500 metros do ponto onde desceria para pegar outro ônibus para a cidade nobre. Poderia descer e caminhar um pouco, mas não queria deixar a situação inacabada. Esperaria o SAMU. Algumas pessoas desciam, atrasadas para cuidar de suas vidas. Outras olhavam angustiadamente. Outras contavam o caso pelo telefone. Outras ainda simplesmente esperavam um outro ônibus para seguirem o trajeto e a vida.
O trocador falou alguma coisa, muito baixo e com grande esforço. Nos aproximamos: ele queria saber onde estava. Contamos o que acontecera. Ele pediu que ligássemos para alguém. O motorista, colega de trabalho, apareceu e disse que já estava ligando. Ele então tranquilizou-se novamente, recostou a cabeça na cadeira. E o SAMU chegou.
Duas pessoas desceram da ambulância e entraram no ônibus. Descrevemos todo o acontecido. Me lembro do motorista comentando com o pessoal do SAMU que nunca vira o trocador passar por algo parecido ou mesmo comentar sobre alguma doença que pudesse lhe causar isso.Com o apoio desses dois agentes do SAMU, o trocador desceu do ônibus e entrou na ambulância.
Nesse mesmo momento, outro ônibus estacionou logo atrás, pra pegar o pessoal. Fomos descendo, lentamente, e entrando no outro carro. Seguimos viagem. Calados. Desci no primeiro ponto, logo à frente e caminhei até o outro ponto, na avenida Brasil.
O dia morria, suavemente, dando lugar à noite. A agitação aumentava em carros e pessoas, devido ao horário. Gente indo pra casa, gente indo pra escola, rush, enfim.
Olhei o relógio do telefone: se o próximo ônibus não demorasse, não chegaria atrasado. E, por sorte, ele chegou logo. Embarquei. Sentei. Olhei pela janela: um carro de polícia, uma senhora com carrinho de bebê, um garoto se equilibrando perigosamente em uma bicicleta muito maior que ele, um supermercado lotado, um banco em greve. Tudo normal.
Pensei no trocador. Pensei em como aqueles poucos minutos, dentro do ônibus, poderiam mudar toda a vida dele. Aquilo certamente teria muitas consequências no trabalho e em sua rotina diária. Ele teria que buscar outra normalidade. E isso não é nada simples, pode ser muito complicado: mudar hábitos, se acostumar com novos situações, novos olhares das pessoas, novos julgamentos é uma verdadeira via crucis para a maioria de nós. Ninguém passa incólume por isso.
Nós nos acostumamos com as coisas, nós nos acostumamos com o que chamamos de nossas vidas e geralmente esquecemos a fragilidade absoluta disso tudo. Tudo é, em nossas vidas, natural e normalmente provisório, temporário. Somos criaturas predestinadas ao fim, desde o começo. Qualquer segundo é definitivo.
Devíamos beber a normalidade com a consciência de que tudo o que está não será mais. Nunca mais, Aquele segundo do olhar, do sorriso, do gesto, do vazio...aquele segundo foi e jamais será, novamente. Essa, a nossa normalidade: a convivência diária com o imponderável, com coisas definitivas que simplesmente não podemos prever ou controlar. Alguns preferem que deuses se ocupem dessa condição, dessa fragilidade, desse imprevisível, já que têm tantos planos para hoje, para amanhã, para o futuro com os netos.
Outros preferem não pensar nisso, outros preferem se dizer ocupados demais para pensar nisso. E simplesmente, vivemos.
Enfim, somos apenas isso: seres vivos, organismos que perambulam por aí seu prazo de validade, seja ele biológico, acidental, conjuntural, ou seja lá o que for. A única coisa que podemos escolher é como passaremos por esse período. Essa talvez a grande lição que devemos aprender e pensar nela, a cada segundo. Como se fosse normal, e que de fato é.
Desci no meu ponto na Carlos Chagas, fui dar minha aula, tomando o cuidado de lavar bem as mãos e os braços antes de cumprimentar as pessoas, antes de entrar em sala. E trabalhei, normalmente.