ANA MARIA
Só.
Só, em casa, Ana Maria esperava. Vagava pelos corredores: o caminhar
de Ana Maria deixa rastros no pó acumulado pelo assoalho de sua
mesmice. O pano - muito branco, muito leve -, da camisola. E a
mulher, percorrendo os vários cômodos de seu vazio.
Chovia.
Ana Maria entre os clarões azuis, esperava. Correu as mãos pelo
corpo: frio. Frio nos ossos e nos olhos da moça. Mas ela não se
desesperava; esperava. Entretanto, os clarões azuis provocavam, por
vezes, pequenos sobressaltos que deixavam escapar o medo em
interjeições, desafiando-lhe a frieza do olhar.
Tomava
chá com batidas do relógio na cozinha. Imensa cozinha, sob a luz
das velas: a tempestade levara a energia. Os sons, chuva e relógio,
a luz piscante das velas...
A
cozinha transformara-se numa catedral de fórmica; e Ana Maria
lembrou-se de um armário onde costumava esconder-se, quando criança.
Na porta do armário havia um espelho. Ana Maria fechava-se no
armário com uma lanterninha que a mãe lhe dera e ficava horas
observando seu reflexo no espelho: sorria, olhava-se; emudecia,
olhava-se; chorava, olhava-se; despida, olhava-se.
Ana
Maria colecionava, distraidamente, migalhas do tempo sobre a mesa da
cozinha, e observava seus dedos, sempre tão finos. Havia uma bruxa
na infância que devorava criancinhas que tinham os dedos gordinhos.
“Houve
um tempo em que os desejos eram como pele, Ana Maria”. A moça
agora esforçava-se para lembrar canções; canções que ela
costumava cantar no chuveiro, nos caminhos, para o vento. Canções
que soube de cor. Canções de amor de tempos atrás... Há tempos
atrás?
Saiu
da cozinha levando um pequeno castiçal de louça, pintado à mão
com motivos orientais, por uma amiga. Uma amiga... Como era seu nome?
Uma amiga que adorava frases: andava com um caderninho anotando
frases. Consumia, vorazmente, “Pensamentos do Dia” e “Momentos
de Reflexão”, com os quais carimbava todos os acontecimentos. Uma
amiga que rubricava as horas com palavras alheias e, muitas vezes,
aleatórias. E era feliz.
Ana
Maria foi até a janela da sala de estar. Que tinha cortinas de
renda: as cortinas e a renda já tiveram uma história e um sentido
em sua história. Ela entreabriu a cortina e sua esquecida história.
A vidraça estava embaçada. Ela desenhou flores, bichinhos e
pequenos objetos. Fazia rabiscos-apenas-rabiscos. um cheiro de grama
molhada.
O
jardim, além da janela, também parecia outro: outras sombras,
outros mistérios, outras raízes. Não era mais o jardim onde a
menina Ana Maria colhera copos-de-leite, admirada, guiando o corte da
longa haste pelas orientações da mãe; sussurrantes orientações,
cuidadosa operação, como se estivessem a cortar um cordão
umbilical. Como se tivessem a consciência de que separavam a flor da
existência da flor.
Não
era mais o jardim onde a menina Ana Maria enterrara bulbos; o jardim
onde enterrara um bichinho de estimação dentro de uma caixa de
goiabada.
Ana
Maria não era mais a menina Ana Maria. Ana Maria não era mais a
mulher Ana Maria. Não era mais a mesma mulher de quando descobriu
estar amando. Não era mais a mulher com os seios em cor, com os
olhos chorando sabor, ansiosa, buscando agarrar-se ao orgasmo que
insistia em fugir-lhe entre os dedos, sempre tão finos.
Um
clarão. Azul. O jardim, a chuva, o som das gotas no vidro da janela;
a cortina, a renda e Ana Maria, com o rosto entre as mãos.
Não
era mais a menina que escreveu poemas, que guardou flores e
embalagens de bombom entre as páginas do caderno adolescente. Não
era mais a menina que aguardou, - coração fora do peito - , os
passos do garoto que vinha tirá-la para dançar. A menina que
registrou no diário, - perdido, distante, quase improvável diário
- , o primeiro beijo
Não
era mais a Ana Maria que marcou encontro, na lanchonete, com o tímido
garoto dos óculos de tartaruga; que ligou para a amiga Marcinha
contando todos os detalhes do encontro: os risos trocados, a amiga a
perder o fôlego, aliviando as tensões e coroando com alegria a
descoberta de um jeito mulher na menina Ana Maria.
Não
era mais essa menina, não era mais essa mulher. Ana Maria não sabia
mais quem é Ana Maria. Ana Maria que esperava.
Enroscou-se
no sofá acariciando a camisola, acariciando o sofá, acariciando as
coisas da sala de estar: coisas de Ana Maria que, um dia, deixou de
ser.
Era
querer. Ela era só querer. Queria outra vez Ana Maria nos dias que
quis Ana Maria
E
ele... ele haveria de chegar, como sempre chegava. Mais cedo ou mais
tarde. E só, Ana Maria.