Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

sábado, 5 de dezembro de 2015

ANA MARIA

ANA MARIA



Só. Só, em casa, Ana Maria esperava. Vagava pelos corredores: o caminhar de Ana Maria deixa rastros no pó acumulado pelo assoalho de sua mesmice. O pano - muito branco, muito leve -, da camisola. E a mulher, percorrendo os vários cômodos de seu vazio.
Chovia. Ana Maria entre os clarões azuis, esperava. Correu as mãos pelo corpo: frio. Frio nos ossos e nos olhos da moça. Mas ela não se desesperava; esperava. Entretanto, os clarões azuis provocavam, por vezes, pequenos sobressaltos que deixavam escapar o medo em interjeições, desafiando-lhe a frieza do olhar.
Tomava chá com batidas do relógio na cozinha. Imensa cozinha, sob a luz das velas: a tempestade levara a energia. Os sons, chuva e relógio, a luz piscante das velas...
A cozinha transformara-se numa catedral de fórmica; e Ana Maria lembrou-se de um armário onde costumava esconder-se, quando criança. Na porta do armário havia um espelho. Ana Maria fechava-se no armário com uma lanterninha que a mãe lhe dera e ficava horas observando seu reflexo no espelho: sorria, olhava-se; emudecia, olhava-se; chorava, olhava-se; despida, olhava-se.
Ana Maria colecionava, distraidamente, migalhas do tempo sobre a mesa da cozinha, e observava seus dedos, sempre tão finos. Havia uma bruxa na infância que devorava criancinhas que tinham os dedos gordinhos.
“Houve um tempo em que os desejos eram como pele, Ana Maria”. A moça agora esforçava-se para lembrar canções; canções que ela costumava cantar no chuveiro, nos caminhos, para o vento. Canções que soube de cor. Canções de amor de tempos atrás... Há tempos atrás?
Saiu da cozinha levando um pequeno castiçal de louça, pintado à mão com motivos orientais, por uma amiga. Uma amiga... Como era seu nome? Uma amiga que adorava frases: andava com um caderninho anotando frases. Consumia, vorazmente, “Pensamentos do Dia” e “Momentos de Reflexão”, com os quais carimbava todos os acontecimentos. Uma amiga que rubricava as horas com palavras alheias e, muitas vezes, aleatórias. E era feliz.
Ana Maria foi até a janela da sala de estar. Que tinha cortinas de renda: as cortinas e a renda já tiveram uma história e um sentido em sua história. Ela entreabriu a cortina e sua esquecida história. A vidraça estava embaçada. Ela desenhou flores, bichinhos e pequenos objetos. Fazia rabiscos-apenas-rabiscos. um cheiro de grama molhada.
O jardim, além da janela, também parecia outro: outras sombras, outros mistérios, outras raízes. Não era mais o jardim onde a menina Ana Maria colhera copos-de-leite, admirada, guiando o corte da longa haste pelas orientações da mãe; sussurrantes orientações, cuidadosa operação, como se estivessem a cortar um cordão umbilical. Como se tivessem a consciência de que separavam a flor da existência da flor.
Não era mais o jardim onde a menina Ana Maria enterrara bulbos; o jardim onde enterrara um bichinho de estimação dentro de uma caixa de goiabada.
Ana Maria não era mais a menina Ana Maria. Ana Maria não era mais a mulher Ana Maria. Não era mais a mesma mulher de quando descobriu estar amando. Não era mais a mulher com os seios em cor, com os olhos chorando sabor, ansiosa, buscando agarrar-se ao orgasmo que insistia em fugir-lhe entre os dedos, sempre tão finos.
Um clarão. Azul. O jardim, a chuva, o som das gotas no vidro da janela; a cortina, a renda e Ana Maria, com o rosto entre as mãos.
Não era mais a menina que escreveu poemas, que guardou flores e embalagens de bombom entre as páginas do caderno adolescente. Não era mais a menina que aguardou, - coração fora do peito - , os passos do garoto que vinha tirá-la para dançar. A menina que registrou no diário, - perdido, distante, quase improvável diário - , o primeiro beijo
Não era mais a Ana Maria que marcou encontro, na lanchonete, com o tímido garoto dos óculos de tartaruga; que ligou para a amiga Marcinha contando todos os detalhes do encontro: os risos trocados, a amiga a perder o fôlego, aliviando as tensões e coroando com alegria a descoberta de um jeito mulher na menina Ana Maria.
Não era mais essa menina, não era mais essa mulher. Ana Maria não sabia mais quem é Ana Maria. Ana Maria que esperava.
Enroscou-se no sofá acariciando a camisola, acariciando o sofá, acariciando as coisas da sala de estar: coisas de Ana Maria que, um dia, deixou de ser.
Era querer. Ela era só querer. Queria outra vez Ana Maria nos dias que quis Ana Maria

E ele... ele haveria de chegar, como sempre chegava. Mais cedo ou mais tarde. E só, Ana Maria.