Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

domingo, 18 de setembro de 2016

O GENERAL, O REITOR e o III ENE

Seguia o ano de 1977. 
Ano agitado. O general Geisel havia anunciado a "Abertura Política" que, segundo ele, seria "lenta, gradual e segura". A oposição crescera a ponto de ameaçar a "Abertura Segura", conforme planejada pelo governo e vieram, entre 76 e 77, a Lei Falcão e o Pacote de Abril. É importante lembrar que a proposta de "Abertura" não foi unanimidade dentro do governo e entre os militares. O General Sylvio Frota, ministro do exército, se opunham frontalmente ao projeto de Geisel, e o presidente teve enfrentar também esta oposição, uma oposição interna, que levaria a uma situação perigosa, em outubro de 1977: a demissão do ministro. O general Geisel tomou o cuidado de contactar todos os oficiais generais do exército brasileiro antes de demitir o ministro, para evitar qualquer tipo de insubordinação. Nos anos seguintes, essa insatisfação de alguns setores ligados à sociedade civil e aos militares com a "Abertura" levaria, por exemplo, na tentativa de atentado a bomba no Rio-Centro
Diversos setores da sociedade civil se mobilizavam no sentido de reorganizarem suas entidades representativas, inclusive, é claro, o movimento estudantil. Desde 1976, os estudantes brasileiros promoviam encontros que tinham como objetivo recompor a UNE. Em 1976, a tentativa de recriar a direção da entidade terminou em enfrentamento com a polícia paulista, a invasão da PUC-SP, vários estudantes feridos e presos.
Mas a mobilização continuou e nova tentativa foi marcada para Belo Horizonte, em Junho de 1977. Os líderes estudantis da UFMG procuraram o reitor para saber da possibilidade de realizarem o encontro e a eleição da nova direção da entidade.
Considerando a proposta de "Abertura" e principalmente a autonomia universitária, o reitor garantiu a realização do encontro, nas dependências da UFMG, cujo centro seria o DA (Diretório Acadêmico) da Escola de Medicina da UFMG, na avenida Alfredo Balena, em Belo Horizonte.
A reitoria também solicitou urnas eleitorais ao TRE-MG que seriam disponibilizadas para que os estudantes realizassem a eleição.
Mas, a Polícia Federal, comandada pelo General Antônio Bandeira, naquele momento, não pretendia colaborar da mesma maneira. A Polícia Federal constatava que caravanas de estudantes começam a se mobilizar em diversos estados, em direção a Belo Horizonte, de ônibus. O general Bandeira entrou em contato com o coronel Ney Braga, que era ministro da educação no governo Geisel, para que este intercedesse junto ao reitor da UFMG, para que o encontro não acontecesse.
O ministro, entretanto, disse ao reitor que a decisão era dele, mas também avisou que a situação era crítica e que o general Bandeira não pretendia recuar.
Em junho de 1977, a situação era tensa em Belo Horizonte. estudantes se mobilizavam por toda a cidade para o encontro e a polícia federal, juntamente com a PMMG, procuravam evitar o mesmo.
As vias de acesso a Belo Horizonte foram reforçadas e todos os ônibus eram parados. Aqueles que traziam estudantes, de diversos estados brasileiros, eram parados e obrigados a retornar a suas cidades de origem.
Passeatas e aglomerações estudantis eram reprimidas por toda a cidade, incluindo a invasão e prisão de estudantes na Igreja São José, no centro de Belo Horizonte.
Cerca de 400 estudantes conseguiram chegar e se abrigaram dentro do DA da Medicina, na Alfredo Balena.
A confusão estava formada. O governador do estado e o general Bandeira ligavam para o reitor da UFMG e ameaçavam invadir a universidade e prender os estudantes. O general chegou a ligar para a residência do reitor e fez a ele diversas ameaças, inclusive de caráter pessoal. O reitor disse ao general que ninguém ia invadir a universidade, levantou o argumento da autonomia universitária e os novos tempos que o país vivia, com a abertura. A coisa esquentou e a conversa terminou em gritos e palavrões.
Carros suspeitos seguiam o carro oficial do reitor da UFMG para todo lado, e este tentava negociar com o governador de Minas, Aureliano Chaves, para que a PMMG não cumprisse a ordem de invadir a universidade.


A essa altura, o campus da saúde, na Alfredo Balena estava cercado pela polícia. Estudantes que ainda tentavam chegar ao local eram abordados e detidos pela polícia.
Eu estava no Colégio Arnaldo, que fica a poucos quarteirões da escola de medicina e fui até lá ver o que estava acontecendo: polícia pra todo lado, inclusive "à paisana". Todo "individuo suspeito" era parado, revistado e "convencido" a se retirar do local. Mesmo com meu uniforme do colégio, de aluno do "científico" (o Ensino Médio da época), recebi alguns olhares inquisidores e resolvi me mandar dali rapidinho e ir pra casa, uma vez que lá também poderiam precisar de mim.
As negociações entre o governador e o reitor continuavam. E os 400 alunos da UFMG permaneciam no DA. O reitor foi até o DA conversar também com os estudantes, junto com o diretor da unidade. Garantiu a eles que faria o possível para que aquilo tudo terminasse da melhor forma possível.


Finalmente, noite e madrugada adentro, o reitor e o governador entraram num acordo, e o general Bandeira teve que engolir a situação: a polícia militar não invadiria o campus de saúde, mas faria um cordão de isolamento do DA até a saída da universidade, na Alfredo Balena. A UFMG enviaria vários ônibus até o campus de saúde onde os estudantes embarcariam. Dali, seriam levados para o parque de exposições da Gameleira, onde seriam fichados pela polícia e em seguida liberados, Ninguém seria preso e não haveria confronto entre a polícia e os estudantes: este foi o máximo conseguido nas negociações, entre o reitor e o governador e este com o general Bandeira, já que o general não conversava mais com o reitor depois dos impropérios e ameaças trocadas.
Assim foi feito: os estudantes entraram nos ônibus da UFMG e foram levados para a Gameleira. Ali, assistidos por funcionários da UFMG que levavam comida e refrigerantes, além de acompanhar os estudantes na entrevista com a polícia e depois saiam com eles até a saída do parque da Gameleira até ter a certeza de que todos os estudantes seriam liberdades. Longas e longas horas de trabalho, vigília e agonia para os estudantes, para os funcionários da UFMG e para as famílias. Todas as famílias: dos estudantes e a minha família também.
Meu pai, Eduardo Osório Cisalpino, então reitor da UFMG, passou dias longe de casa, ou aparecendo por poucos momentos. Ou aparecia o Hélio, motorista da reitoria, para pegar roupas ou algum documento. Mas me lembro, claramente, da "conversa" com o general. Depois do que ouvi, pensei que ele ia ser preso ou algo ainda pior. Me lembro de ver o carro, sem placas, com quatro homens dentro, parado na esquina de casa, aguardando que o carro da reitoria saísse com meu pai.


Tempos difíceis. Mas também tempos em que o orgulho que tenho de meu pai, crescia além do que eu jamais imaginara. Hoje, quando vejo as homenagens que ele recebe na UFMG, e a forma como é tratado pelos mais antigos da universidade, percebo que essa memória ainda está viva por lá.
Beijo, meu pai.