Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 01

Acordo sem pensar em trabalho, acordo sem compromissos, a não ser comigo mesmo. Não há horários a me apertar os passos.
Decido pois, comprar cigarros. São seis e trinta e só há mais um cigarro no maço e o posto de gasolina já está funcionando. Pego as chaves do carro, abro a porta...Me vem mais uma vez a prazeirosa lembrança de que não há horários e o dia é só meu.
Saio, cruzo a distância entre porta e portão, o sinal do alarme do carro me atrai rapidamente o olhar e, quando volto a atenção para o cadeado do portão, a surpresa: a presença languida, negra e tristonha de uma vaca. Ela me olha com um olhar de cachorro urbano virando lixo e eu a olho com um olhar de fazenda. E ela rapidamente nota meu equívoco.
Neste momento, se eu disser que ela escorregou-me um breve "pois é, uma vaca, na cidade, bobalhão" no canto do grande olho castanho-curral ninguém acreditaria... Mas é a mais natural das verdades diante da situação.
Segundos... ou melhor, frações de segundos em que revivi milhões de referências: Barbacena, Fazenda do Machadinho, Silos, leite com goiabada, a prima Maria Laura, Tio Zé, Cigarro de Palha, viola, o cachorro Leão, Cordisburgo, umbigo, paineira, chuva nas curvas de nível, bambuzal, meu pai, peixe seco, Toninho, limão capeta, urucum, lixia, Guimarães Rosa... Tudo isso exalou em espírito e saudade daquele corpo magro e solitário da vaca urbana.
Abro o portão, com gestos calmos e amigáveis, para não espantar a visita, permitindo que ela continuasse seu trabalho de procurar algo no lixo. A vaca e o lixo urbano. E como cresceu o conceito de lixo urbano diante da simples presença da vaca. Agora, a cidade parecia sobrando, a cidade enchia de impurezas a pura presença da vaca.
Um garoto com uniforme de escola municipal invadiu a cena, em sua bicicleta barulhentamente vermelha. E seu olhar foi de assombro, com cheiro de medo. As mãos mostraram indecisão na condução do veículo. Ele então acelerou, com certeza pra fugir daquele extra-terreste que certamente ruminava algo contra ele. Disparou ruabaixo murmurando... Não pude compreender o que murmurava, mas imagino que se perguntava o que havia acontecido tão de repente com seu universo, com sua rotina de ruas e prédios e carros e lixo urbano, interrompida e aviltada pela presença da vaca. Ela... nem-te-ligo.
Entrei no carro, retirei-o da garagem - imaginei que ela devia estar acostumada com veículos. Outra enxurrada de imagens: trator, carro de bois, caminhonete, carroça, rangidos, o som das folhas da cana-de-açucar se arrastando pela estrada de terra batida, o ronco do motor do caminhão de leite, meu tio Geraldo e a Linha de Leite do Hotel Grogotó em Barbacena...
Quando desci do carro para fechar o portão, ela virou-se, puxando alguma coisa do lixo com a boca: era um saco plástico, molhado, encharcado, que bateu.. splach!... no asfalto. E olhou pra mim, e o olhar era de resignada frustração, e eu li nesse olhar: essa é minha vida, aqui, nesse lixo urbano. O lixo urbano, que tantas vezes vi alimentando pessoas, não alimentava a vaca. Sua magreza era a prova da falta absoluta de alimentos, na cidade, para o corpo e a alma das vacas.
Então, ela virou, e começou a caminhar. Lentamente, como quem pensa na vida, como quem quer gastar o tempo, tempo que em certos momentos nos parece - e certamente parecia a ela, naquele momento, um peso grande demais pra carregar. E nos movemos lentamente nesse tempo denso como leite, como coalhada.
A vaca subiu a ladeira da Igreja, nesse passo lento, envolvida pela solidão, como uma vaca solta na cidade. Eu a olhava, e seu passo surreal na ladeira da Igreja, sua solidão bovina na aridez urbana me entristeceu, porque parecia que todas aquelas lembranças, toda aquela explosão afetiva que emergiu da alma da vaca, do seu olhar, do seu lento ruminar, parecia ir embora com ela, parecia igualmente irreal, distante, longínguo... Para sempre perdido, sem lugar... como uma vaca na cidade.