Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

ODISSÉIA DE UM HOMEM COMUM - EPISÓDIO 8

RUA HENRIQUE PASSINI

Até os meus nove anos, morávamos na rua Henrique Passini, entre Níquel e Oriente, na Serra. Era uma casa pequena, charmosa, aquela arquitetura típica dos anos 40/50, no Brasil.
Tenho pouca memória do interior da casa, mas, dos exteriores, tanto da frente quanto dos fundos, a lembrança é muito nítida. Especialmente da cozinha e do quintal. Nesse quintal, bem ao fundo, havia um pequeno barracão.
Na verdade, a casa era especialmente o quintal, onde a maior parte das brincadeiras acontecia. Brincávamos muito, entre nós, os irmãos. Sempre havia também algum dos vizinhos mais freqüentes em casa, nessas memórias, como o Ênio, o garoto que morava na casa ao lado. Meu amigo. O pai do Ênio montava aeromodelos, e isso era muito impressionante pra mim, na época.
Brincávamos de casinha, eu e minhas irmãs. Eu, o “pai”, “saia pra trabalhar”, enquanto elas ficavam tomando conta das “crianças” (as bonecas). Havia também a comidinha, feita com folhas e galhos e, algumas vezes, com grãos de arroz e feijão emprestados por minha mãe.
Me lembro de “trabalhar” construindo estradas, em um pequeno monte de areia, junto à parede da cozinha. Os tratores e caminhões eram caixas de papelão ou pedaços de madeira. Brinquedos “de verdade” eram poucos, nessa época, mas, não faziam a menor falta. Mas não deixavam de ser desejados e impactantes. Talvez por isso a memória dos brinquedos “de verdade” seja tão forte: um avião de plástico que meu irmão Rodrigo ganhou, uma diligência, do tipo faroeste, com cavalos brancos, que eu ganhei.
Essas minhas lembranças são, em geral, esparsas, tênues, às vezes fugidias. Adormecidas, acordam com um cheiro, uma música, um rosto, uma palavra, uma cena.
Há apenas uma presença total, nessas memórias. Uma presença que está em todas as minhas memórias desse período: o olhar de minha mãe. Sempre que tirava os olhos da brincadeira, encontrava o olhar de minha mãe.
Mais que vigilante, minha mãe participava dessas brincadeiras. Direta ou indiretamente. Por vezes contribuía com biscoitos ou bolinhos de verdade pra nossa “casinha”. Outras vezes tinha um papel qualquer, como a “Dona da Venda”, onde fazíamos “compras”. Organizadíssimas compras: até “dinheiro” tinha.
Certa vez, ganhamos um jogo que tinha embalagens de produtos e tudo mais, um verdadeiro “mini-supermercado”. Rendeu meses e meses de brincadeiras.
E minha mãe tolerava pacientemente e divertidamente ver sua cozinha ou sua sala transformadas em supermercado.
Essa presença tão forte e definitiva que tenho de minha mãe, ligada à casa, à tranqüilidade e suave funcionamento do nosso lar, me deixou uma herança profunda: adoro minha casa, adoro ficar em casa. E mais, adoro fazer coisas de casa, ganhar coisas para a casa. Se você me der de presente um pano de prato lindinho, vou ficar feliz demais, acredite.
E adoro cozinhar, principalmente. Tenho memória de ajudar minha mãe na cozinha, com pequenas tarefas, como descascar batatas, ou picar chuchu, desde muito criança. Fazia e faço isso ainda com muito gosto. Minha mãe cozinha com amor, por isso, aprendi que cozinhar para alguém é uma declaração de amor, de afeto.
Ver as pessoas comerem, com prazer e descontração, alguma coisa que eu preparei, me dá uma grande alegria. É realmente um prazer. Vejo esse prazer quando minha mãe está na cozinha. E cozinha para seis filhos. E sabe todos os pratos preferidos. Ainda hoje, quando vou em casa, ela me recebe com meu prato preferido: carne moída com quiabo.
Alguém certa vez disse, com precisão absoluta, que minha mãe tem seis filhos únicos.
Uma das mais doces lembranças que tenho da minha infância, uma das lembranças que mais traduzem o que foi a minha infância e, portanto, boa parte do que eu sou, é a imagem de minha mãe, eu e meus irmãos, sentados nos degraus da escadinha que dava da cozinha para o quintal da casa da rua Henrique Passini, comendo, absolutamente deliciados e encantados, “capitão”.
“Capitão” era um bolinho, feito à mão , ou melhor, feito com as mãos. Fazia-se o prato, normalmente, com arroz, feijão, carne – de preferência picada, ou moída, e o que mais viesse, um pouco de farinha, para dar liga, pegava-se um punhado com a mão, amassando, gentilmente, pra formar um bolinho e, pronto.
Comer com a mão era algo indescritivelmente encantador, pra nós. E proibido – meu pai não gostava dessa prática, dizia que era coisa de índio – o que tornava a aventura ainda mais mágica. Portanto, só era feita quando ele não estava. Era algo só nosso, dos filhos com a mãe.
Nunca comi nada melhor na minha vida. E acho que nunca comerei. É um sabor que pertence à minha alma, não somente ao meu paladar. Assim como a carne moída com quiabo, da Dona Neuza.