As Aventuras de Mura no
País da Ditadura
Episódio 1: Não se
fala em corda na casa de enforcado.
A primeira coisa que
eu queria dizer é que fico muito feliz, muito feliz mesmo, que a
maioria dos que vão ler isso aqui só conhece a palavra ditadura do
dicionário. E espero, e lutarei, para que continue assim.
Dito isso, vamos aos
fatos.
Estamos nos “Anos de
Chumbo”, o general-presidente é Emílio Garrastazu Médici. O AI-5
estava em vigor a menos de um ano. Imagino que todos saibam o que foi
o AI-5. Passei de criança a adolescente sob o AI-5. E a primeira coisa
que se aprendi é que, em uma ditadura, não se fala sobre ela...pelo
menos não impunemente.
Minha mãe tinha o
hábito de ir à missa no convento dos frades capuchichos, no alto da
Serra. O lugar existe ainda hoje, em Belo Horizonte, mas em uma
região já totalmente urbanizada e incorporada ao cotidiano da
cidade. Na época, era quase zona rural. A rua mal chegava até lá,
e era cercado pela mata nativa, quase intocada, da Serra do Curral.
Uma das coisas que atraia minha mãe ao convento era exatamente esse
clima bucólico.
Nunca fui muito de
missas. Na minha infância, eu sempre achava alguma coisa mais
interessante pra fazer, num domingo pela manhã, do que ir à misssa.
Entretanto, o lugar era realmente lindo e, por isso, fui algumas
vezes com ela à missa. Até que de repente, as missas no Convento
dos Capuchinhos, sumiram da minha vida.
Não me dei conta
disso, no início, é claro. Mas, certo dia me lembrei do Convento. E
fui perguntar à minha mãe se podíamos ir à missa no Convento. Ela
me olhou, calmamente e disse que não havia mais missas no Convento.
“Os frades não estão mais lá, se mudaram para outro lugar”
disse ela. “Pra onde, mãe”?. “Não sei” e não falou mais
sobre o assunto. E foi a última coisa que ouvi sobre os capuchinhos
por um tempo. A memória do lugar ficou, e toda vez que eu passava
por lá, me lembrava desse episódio.
Até o dia que
descobri que o Convento dos Capuchinhos tinha sido esvaziado pelas
forças de repressão, pelo DOPS – Departamento de Ordem Pública e
Social. Alguns dos frades tinham sido presos sob acusação de
subversão, por esconderem e darem fuga a procurados pela Operação
Bandeirantes.
Algo semelhante
aconteceu quando meus pais tiveram que mudar minha irmã mais velha
de escola. Ela estudava no Colégio Helena Guerra, em Belo Horizonte,
que pertencia a uma congregação de freiras (não me lembro mais
qual congregação). O colégio foi fechado sob a mesma acusação:
subversão. Lembro da minha irmã chorando por ter que mudar de
escola. Me lembro também de ter ouvido alguém dizer que as freiras
“eram comunistas” - não em casa. Nunca ouvi meu pai ou minha mãe
usando a palavra “subversivo” ou “comunista” com relação a
qualquer pessoa, em casa, quando eu era garoto.
Eu não sabia o que
estava acontecendo, não se comentava sobre ditadura, nem em casa,
nem na escola. Era perigoso demais. Numa ditadura, amiguinho, ninguém
senta na sala, com os amigos no bar, ou comenta na fila do banco com
um desconhecido para passar o tempo: “E essa ditadura, hein?”.
“Pô, cidadão, nem me vale, nessa ditadura. Que ditadurão, cara”!
- isso, amiguinho, podia dar muitos problemas...
Senão, vejamos: certo
dia, fui com minha mãe ao centro da cidade. Me lembro claramente
desse episódio, porque eramos só eu e ela, nessa aventura –
aventura, pelo menos pra mim. O bom de ser criança é que aventuras
moram em qualquer lugar, em qualquer palavra. O fato de sermos só eu
e ela era muito raro: minha mãe já tinha os seis filhos, nessa
época, e um deles era ainda quase um bebê. Não sei o motivo de
estar em casa vadiando naquela manhã. Devia estar doente ou fingindo
alguma doença. Fingir doença, como sabem, é uma arte: tem que
estar doente o suficiente para não ir à aula e sadio o suficiente
para não perder o dia em cima da cama. Acho que foi esse o caso.
Pegamos o trolebus
(não sabe o que é trolebus? Ônibus elétrico que circula entre o
centro da cidade e o alto da rua do Ouro, em Belo Horizonte. Ainda me
lembro do barulhinho que fazia: “zzzzzzzzzzzzzzz” - lá ia a
longa haste do teto do ônibus até os fios. Anos depois, enterraram
os fios na “Operação Tatú” e acabaram com os trolebus. Parece
que estão voltando, agora). Descemos na Praça Sete. O “pirulito”
não estava mais lá. Tinha sido levado para a praça Diogo de
Vasconcelos, também conhecida como “Praça da Savassi”, devido a
uma famosa padaria que havia na esquina de Getúlio Vargas com
Cristovão Colombo, que pertencia a uma família italiana (família Savassi).
Anos depois, trouxeram o “pirulito” de volta.
Fomos primeiro à
Galeria do Ouvidor. Eu adorava ir lá por causa da escada rolante. A
escada rolante da Galeria do Ouvidor foi a primeira que vi na vida, e
uma das primeiras de Belo Horizonte. E ainda atraia muita gente, o
“turismo da escada rolante”. Depois fomos ao banco. Banco do
Estado de Minas Gerais, o BEMGE, na agência que ficava na Afonso
Pena com Carijós, na praça Sete. O prédio ainda existe, já que é
prédio tombado pelo patrimônio histórico, mas não me lembro o que
existe lá hoje.
Entramos na agência,
e depois das recomendações de praxe – “não saia daqui. Se sair
da agência te mato” e coisas semelhantes na doce relação mãe e
filho, minha mãe foi ao caixa e eu fiquei por ali admirando aquele
prédio lindo: imensas colunas, vitrais coloridos nas janelas,
cerâmica decorada no piso...E então eu vi um cartaz: PROCURA-SE.
ASSALTANTES DE BANCO.
Uau! E eu pensando que
assaltante de banco era coisa só da TV e do Cinema. Fiquei ali
olhando aquelas caras. Alguns homens e uma mulher. Abaixo, o telefone
da polícia para o cidadão passar informações. Viajei naquele
cartaz, que era mais ou menos parecido com esse aqui abaixo.
Minha
mãe me viu ali, e não conseguiu esconder o ar de espanto e
preocupação. Veio andando rapidinho e me tirou de lá: “Para de
ficar olhando isso”. E seguimos a vida.
Anos depois, vi aquele
cartaz de novo, em um livro e vim a saber que eram membros da ALN e
da VPR, entre eles, o ex-capitão de exército Carlos Lamarca e sua
namorada. Assaltavam bancos para financiar a guerrilha, já que o
acesso a recursos vindos da URSS, via Cuba, estava cada vez mais
difícil para eles.
Mas, a primeira vez
que vi a repressão ao vivo e a cores, com todas as sua evidências,
foi por causa da escola. Tínhamos uma professora que certo dia
apareceu em sala de aula com um bodoque. Em Belo Horizonte chamamos
de bodoque. Há quem chame de atiradeira ou estilingue. Pra mim, é
bodoque mesmo. A pobre moça não queria mostrar aquilo, mas, por
acidente, ele apareceu quando ela tirou alguma coisa da bolsa. E todo
mundo foi lá ver aquela coisa. Era um bodoque diferente, não era
como os nossos, feitos com forquilha de goiabeira e fitas de borracha
de câmara de ar de pneus (sim, nessa época, pneus tinham câmaras
de ar). Era um bodoque de metal com fita de borracha hospitalar,
daquelas borrachas usadas para garrote ao tirar sangue de pacientes.
Muito mais poderoso. E não usava pedras: a bolsa dela estava cheia
de esferas de rolamentos.
A professora contou
que ia a uma manifestação estudantil e que a polícia militar havia
proibido a manifestação – em tempo: manifestações de caráter
político eram proibidas, de acordo com o AI-5. Todas e qualquer uma.
A polícia ia com o que chamamos hoje de tropa de choque e também
com a cavalaria. E eles atacavam a polícia com aqueles bodoques e
esferas de rolamento. Pra você que está lendo isso e pensando no
assunto, devo dizer que uma esfera dessas pode matar uma pessoa,
portanto, se for fazer isso, esteja preparado pra assumir as
possíveis consequências.
Acabou-se a aula e
acabou-se a professora. Dias depois, soubemos que ela estava
internada na enfermaria do Hospital João XIII. Alguns colegas
decidiram visitá-la. Convenceram os pais, e lá foram eles. Ao
chegar, diziam o nome da paciente que estavam procurando.
Imediatamente eram encaminhados a dois policiais militares que, por
sua vez, levavam os visitantes até uma salinha, onde estavam outros
dois agentes do DOPS e um escrivão, agarrado a sua máquina de
escrever. Tinham que dar o nome, endereço, e explicar os motivos
pelos quais estavam querendo saber daquela pessoa.
O que aconteceu, vocês
já devem imaginar: ninguém nunca mais foi procurar por ela. Não
que eu saiba. E ninguém nunca mais ouviu falar dela. Não que eu
saiba.
Foi assim que comecei
a conhecer o que era a dita...a ditadura. E seus métodos.