Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

terça-feira, 19 de abril de 2016

AS AVENTURAS DE MURA NO PAÍS DA DITADURA - EPISÓDIO 01

As Aventuras de Mura no País da Ditadura

Episódio 1: Não se fala em corda na casa de enforcado.

A primeira coisa que eu queria dizer é que fico muito feliz, muito feliz mesmo, que a maioria dos que vão ler isso aqui só conhece a palavra ditadura do dicionário. E espero, e lutarei, para que continue assim.
Dito isso, vamos aos fatos.
Estamos nos “Anos de Chumbo”, o general-presidente é Emílio Garrastazu Médici. O AI-5 estava em vigor a menos de um ano. Imagino que todos saibam o que foi o AI-5. Passei de criança a adolescente sob o AI-5. E a primeira coisa que se aprendi é que, em uma ditadura, não se fala sobre ela...pelo menos não impunemente.
Minha mãe tinha o hábito de ir à missa no convento dos frades capuchichos, no alto da Serra. O lugar existe ainda hoje, em Belo Horizonte, mas em uma região já totalmente urbanizada e incorporada ao cotidiano da cidade. Na época, era quase zona rural. A rua mal chegava até lá, e era cercado pela mata nativa, quase intocada, da Serra do Curral. Uma das coisas que atraia minha mãe ao convento era exatamente esse clima bucólico.
Nunca fui muito de missas. Na minha infância, eu sempre achava alguma coisa mais interessante pra fazer, num domingo pela manhã, do que ir à misssa. Entretanto, o lugar era realmente lindo e, por isso, fui algumas vezes com ela à missa. Até que de repente, as missas no Convento dos Capuchinhos, sumiram da minha vida.
Não me dei conta disso, no início, é claro. Mas, certo dia me lembrei do Convento. E fui perguntar à minha mãe se podíamos ir à missa no Convento. Ela me olhou, calmamente e disse que não havia mais missas no Convento. “Os frades não estão mais lá, se mudaram para outro lugar” disse ela. “Pra onde, mãe”?. “Não sei” e não falou mais sobre o assunto. E foi a última coisa que ouvi sobre os capuchinhos por um tempo. A memória do lugar ficou, e toda vez que eu passava por lá, me lembrava desse episódio.
Até o dia que descobri que o Convento dos Capuchinhos tinha sido esvaziado pelas forças de repressão, pelo DOPS – Departamento de Ordem Pública e Social. Alguns dos frades tinham sido presos sob acusação de subversão, por esconderem e darem fuga a procurados pela Operação Bandeirantes.
Algo semelhante aconteceu quando meus pais tiveram que mudar minha irmã mais velha de escola. Ela estudava no Colégio Helena Guerra, em Belo Horizonte, que pertencia a uma congregação de freiras (não me lembro mais qual congregação). O colégio foi fechado sob a mesma acusação: subversão. Lembro da minha irmã chorando por ter que mudar de escola. Me lembro também de ter ouvido alguém dizer que as freiras “eram comunistas” - não em casa. Nunca ouvi meu pai ou minha mãe usando a palavra “subversivo” ou “comunista” com relação a qualquer pessoa, em casa, quando eu era garoto.
Eu não sabia o que estava acontecendo, não se comentava sobre ditadura, nem em casa, nem na escola. Era perigoso demais. Numa ditadura, amiguinho, ninguém senta na sala, com os amigos no bar, ou comenta na fila do banco com um desconhecido para passar o tempo: “E essa ditadura, hein?”. “Pô, cidadão, nem me vale, nessa ditadura. Que ditadurão, cara”! - isso, amiguinho, podia dar muitos problemas...
Senão, vejamos: certo dia, fui com minha mãe ao centro da cidade. Me lembro claramente desse episódio, porque eramos só eu e ela, nessa aventura – aventura, pelo menos pra mim. O bom de ser criança é que aventuras moram em qualquer lugar, em qualquer palavra. O fato de sermos só eu e ela era muito raro: minha mãe já tinha os seis filhos, nessa época, e um deles era ainda quase um bebê. Não sei o motivo de estar em casa vadiando naquela manhã. Devia estar doente ou fingindo alguma doença. Fingir doença, como sabem, é uma arte: tem que estar doente o suficiente para não ir à aula e sadio o suficiente para não perder o dia em cima da cama. Acho que foi esse o caso.
Pegamos o trolebus (não sabe o que é trolebus? Ônibus elétrico que circula entre o centro da cidade e o alto da rua do Ouro, em Belo Horizonte. Ainda me lembro do barulhinho que fazia: “zzzzzzzzzzzzzzz” - lá ia a longa haste do teto do ônibus até os fios. Anos depois, enterraram os fios na “Operação Tatú” e acabaram com os trolebus. Parece que estão voltando, agora). Descemos na Praça Sete. O “pirulito” não estava mais lá. Tinha sido levado para a praça Diogo de Vasconcelos, também conhecida como “Praça da Savassi”, devido a uma famosa padaria que havia na esquina de Getúlio Vargas com Cristovão Colombo, que pertencia a uma família italiana (família Savassi). Anos depois, trouxeram o “pirulito” de volta.
Fomos primeiro à Galeria do Ouvidor. Eu adorava ir lá por causa da escada rolante. A escada rolante da Galeria do Ouvidor foi a primeira que vi na vida, e uma das primeiras de Belo Horizonte. E ainda atraia muita gente, o “turismo da escada rolante”. Depois fomos ao banco. Banco do Estado de Minas Gerais, o BEMGE, na agência que ficava na Afonso Pena com Carijós, na praça Sete. O prédio ainda existe, já que é prédio tombado pelo patrimônio histórico, mas não me lembro o que existe lá hoje.
Entramos na agência, e depois das recomendações de praxe – “não saia daqui. Se sair da agência te mato” e coisas semelhantes na doce relação mãe e filho, minha mãe foi ao caixa e eu fiquei por ali admirando aquele prédio lindo: imensas colunas, vitrais coloridos nas janelas, cerâmica decorada no piso...E então eu vi um cartaz: PROCURA-SE. ASSALTANTES DE BANCO.
Uau! E eu pensando que assaltante de banco era coisa só da TV e do Cinema. Fiquei ali olhando aquelas caras. Alguns homens e uma mulher. Abaixo, o telefone da polícia para o cidadão passar informações. Viajei naquele cartaz, que era mais ou menos parecido com esse aqui abaixo. 


Minha mãe me viu ali, e não conseguiu esconder o ar de espanto e preocupação. Veio andando rapidinho e me tirou de lá: “Para de ficar olhando isso”. E seguimos a vida.
Anos depois, vi aquele cartaz de novo, em um livro e vim a saber que eram membros da ALN e da VPR, entre eles, o ex-capitão de exército Carlos Lamarca e sua namorada. Assaltavam bancos para financiar a guerrilha, já que o acesso a recursos vindos da URSS, via Cuba, estava cada vez mais difícil para eles.
Mas, a primeira vez que vi a repressão ao vivo e a cores, com todas as sua evidências, foi por causa da escola. Tínhamos uma professora que certo dia apareceu em sala de aula com um bodoque. Em Belo Horizonte chamamos de bodoque. Há quem chame de atiradeira ou estilingue. Pra mim, é bodoque mesmo. A pobre moça não queria mostrar aquilo, mas, por acidente, ele apareceu quando ela tirou alguma coisa da bolsa. E todo mundo foi lá ver aquela coisa. Era um bodoque diferente, não era como os nossos, feitos com forquilha de goiabeira e fitas de borracha de câmara de ar de pneus (sim, nessa época, pneus tinham câmaras de ar). Era um bodoque de metal com fita de borracha hospitalar, daquelas borrachas usadas para garrote ao tirar sangue de pacientes. Muito mais poderoso. E não usava pedras: a bolsa dela estava cheia de esferas de rolamentos.
A professora contou que ia a uma manifestação estudantil e que a polícia militar havia proibido a manifestação – em tempo: manifestações de caráter político eram proibidas, de acordo com o AI-5. Todas e qualquer uma. A polícia ia com o que chamamos hoje de tropa de choque e também com a cavalaria. E eles atacavam a polícia com aqueles bodoques e esferas de rolamento. Pra você que está lendo isso e pensando no assunto, devo dizer que uma esfera dessas pode matar uma pessoa, portanto, se for fazer isso, esteja preparado pra assumir as possíveis consequências.
Acabou-se a aula e acabou-se a professora. Dias depois, soubemos que ela estava internada na enfermaria do Hospital João XIII. Alguns colegas decidiram visitá-la. Convenceram os pais, e lá foram eles. Ao chegar, diziam o nome da paciente que estavam procurando. Imediatamente eram encaminhados a dois policiais militares que, por sua vez, levavam os visitantes até uma salinha, onde estavam outros dois agentes do DOPS e um escrivão, agarrado a sua máquina de escrever. Tinham que dar o nome, endereço, e explicar os motivos pelos quais estavam querendo saber daquela pessoa.
O que aconteceu, vocês já devem imaginar: ninguém nunca mais foi procurar por ela. Não que eu saiba. E ninguém nunca mais ouviu falar dela. Não que eu saiba.

Foi assim que comecei a conhecer o que era a dita...a ditadura. E seus métodos.