Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

domingo, 8 de maio de 2016

AS AVENTURAS DE MURA NO PAÍS DA DITADURA. EPISÓDIO 4: O CHOQUE DA ABERTURA

As Aventuras de Mura no País da Ditadura


Episódio 4 - O Choque da “Abertura”





O ano de 1977 foi um ano difícil. O presidente-general era Ernesto Geisel. Geisel era um militar muito conhecido na vida política do país. Quando Tenente, Geisel participou da “Revolução de Trinta”, ajudando Getúlio Vargas e a Aliança Liberal a deporem o presidente Washington Luís. Nesse mesmo período, trabalhou com Tenente Juarez Távora, o “vice-rei do norte”, durante a “revolução”, e, também sob o comando de Juarez Távora, ajudou a combater as forças da Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo.
Depois, já como Major, Geisel foi o oficial comandante do destacamento responsável por aguardar a saída do presidente Vargas do Palácio do Catete, em 1945. Em resumo: ajudou a colocar e tirar Vargas do poder entre 1930 e 1945.
Nos anos 50, Geisel aproximou-se  do grupo conhecido como “Sorbonne”, da Escola Superior de Guerra, um dos grupos responsáveis pela preparação do golpe de 64, junto com organizações da sociedade civil. Geisel é o melhor exemplo da importante máxima da política brasileira: “Os tenentes de 30 são os generais de 64”.
Geisel assumiu o poder no momento em que o modelo multinacional-associado, implementado pelos governos a partir de 64, entrava em colapso, depois de alguns anos de “Milagre Econômico”. A rápida deterioração da economia brasileira, devido, entre outros fatores, à Crise do Petróleo desencadeada pela Guerra do Yom Kippur, aumentava de forma significativa a oposição ao governo.
Geisel anunciou que iria iniciar a “Abertura Política” cujo objetivo final seria devolver o poder aos civis e restabelecer as normalidades democráticas. Mas, anunciou também que essa abertura seria “Lenta, Gradual e Segura” - ou seja: sob controle do governo e voltada para os objetivos que o governo considerava aceitáveis.
A resposta da população vinha sob a forma de crescimento exponencial da oposição, ou melhor, da única oposição permitida na época: o MDB. A maioria da população, especialmente no Sul e no Sudeste, despejava votos - os votos possíveis, no MDB. No Norte e no Nordeste, onde as carências eram maiores com relação a recursos do governo, a ARENA ainda obtinha algumas vitórias.
Mesmo no Sul e no Sudeste, muita gente já não esperava muita coisa nem mesmo do MDB e o “voto de protesto”, branco ou nulo, fazia lembrar a eleição do  Rinoceronte Cacareco, em São Paulo, em 1959.
O anúncio da dita “Abertura”, mesmo que “Lenta e Gradual”, levou também a uma reação contrária dos setores que ainda apoiavam o governo. A morte de pessoas, como o jornalista Wladimir Herzog, da Veja, dois anos antes, os ataques a bancas de revistas que vendiam jornais e revistas consideradas “subversivas”, como o Pasquim, deixavam Geisel em situação delicada, já que enfrentava oposição à “direita” - incluindo uma tentativa de golpe contra ele articulada pelo Ministro Sylvio Frota, do exército,  e à “esquerda”.
Sentindo sua “Abertura Lenta, Gradual e Segura” ameaçada, Geisel decidiu tomar medidas para assegurar o controle do governo sobre a situação. Primeiro, em 1976, veio a lei Falcão, a “lei da mordaça”, que proibia debates e discursos políticos na televisão e no rádio, especialmente durante o Horário Eleitoral. Candidatos podiam dizer apenas dados pessoais, Me lembro, por exemplo, de uma candidata a vereadora em Belo Horizonte, que aparecia no horário eleitoral dizendo o nome, número, cargo a que se candidatava e a frase “Mãe de Cinco Filhos” .
No ano seguinte, em 1977, as coisas ainda andavam agitadas, e Geisel decidiu usar o AI-5. Felizmente, essa seria a última vez na história do Brasil ( e espero que continue sendo ad eternum) que um ato de exceção seria usado contra a sociedade civil.
Geisel baixou o “Pacote de Abril”, cujo principal objetivo era manter o controle do governo sobre o Congresso Nacional. Como a oposição crescia, o governo temia que eles conseguissem fazer reformas constitucionais, para as quais eram necessários dois terços da Câmara e do Senado.
Naquele dia Brasília amanheceu cercada por tanques do Setor Militar Urbano. O Congresso Nacional foi fechado para “Reformas Políticas” que iriam incluir a indicação de um terço dos senadores pelo governo, os chamados senadores “biônicos” (nome debochado dado pela população aos “superpoderes” dos senadores que não precisariam mais ser eleitos - Paulo Maluf foi um deles. José Sarney também. Era uma referência a uma série americana de muito sucesso na TV: “O Homem de Seis Milhões de Dólares”, na qual o personagem principal tinha membros bioeletrônicos que lhe davam força sobre-humana). O objetivo da reforma, como já disse, era evitar que a oposição controlasse o Congresso Nacional.
Em Belo Horizonte, movimentos estudantis decidiram fazer um protesto público. Não preciso dizer que isso era ilegal, não é? Naquele tempo, "conversa de mais de dois era comício". Os “manifestantes” podiam ser presos e ter suas matrículas universitárias canceladas, de acordo com a lei 477.
Recebemos informação, no meu colégio, que o protesto aconteceria na Av. Álvares Cabral, em frente à escola de direito da UFMG.
E fomos pra lá. Fui, me borrando de medo. A coisa não era brincadeira naquela época. Lembrem-se das leis em vigor. Mas, fui.
Chegamos lá um pouco cedo, e o pessoal ainda estava se juntando. Espalhados pela Álvares Cabral, pelo canteiro central da avenida, na calçada em frente à escola de direito. Chegou um destacamento da tropa de choque. Os “homi” se posicionaram entre o canteiro e a calçada da escola, dividindo o pessoal. Sob protestos e palavras de ordem, colocaram um cordão de isolamento entre a avenida e a escola. E o pessoal gritando e cantando e lançando palavras de ordem contra Geisel e o “Pacote de Abril”. E a coisa foi engrossando. E eu numa situação difícil, espremido no cordão de isolamento.
Daí chegou a cavalaria. Vou dizer uma coisa pra vocês: estar espremido entre uma multidão, um cordão de isolamento e soldados a cavalo, portando enormes cacetes de madeira e cacetes elétricos- sim, eles usavam um cacete que dava choques, não é exatamente a melhor posição na vida de uma criatura.
E a coisa foi engrossando. O pessoal empurrava lá de trás e a gente de cara com os cavalos, os cacetes e os escudos do choque. A gente segura no cordão e empurrava de volta pra trás. A polícia estava muito calma pro meu gosto. Simplesmente assistiam (você pode achar isso comum, hoje, na época não era nem um pouco comum). Provavelmente, achavam que estava sob controle, já que os cavalos intimidaram muita gente, que começou a ir embora.
Mas, tem sempre o “de repente”, não é? Pois então: de repente, veio uma onda mais forte lá de trás e muitos dos que estavam espremidos no cordão foram “cuspidos” em direção aos policiais. E o pau quebrou.
O choque baixou o cacete nos que tentavam correr pela Álvares Cabral abaixo. Os que estavam a cavalo, jogavam os cavalos contra os caras e o cacete gigante comia. Eu achei que tentar correr paralelamente aos policiais era pior, e o melhor era tentar entrar multidão adentro, empurrando o povo que também tentava sair dali.
Daí, dei as costas para os policiais e ajudei os caras e abrir caminho no meio da galera. E foi aí que me pegaram.
Tomei um choque do maldito cacete elétrico bem no meio das costas. A coisa ardeu horrores, Parecia que alguém tinha me encostado um cigarro aceso nas costas. Empurrei com mais força, vi um espaço  e me enfiei nele. Acabei saindo na esquina da rua da Bahia, com aquele negócio ainda doendo muito. Continuei correndo. Desci a rua lateral até a rua Goiás, passei ainda correndo pela Boa Viagem e continuei correndo até a Afonso Pena, em frente ao Palácio da Artes.
Entrei no Parque Municipal, pela portaria lá de cima, em frente à Faculdade de Ciências Médicas. Ali, estava tudo tranquilo. Então, tirei a camisa, evitando encostar no que eu imaginava que era uma ferida, já que ainda ardia muito. Olhei a camisa: ela estava com uma marca de queimado, entre as omoplatas. E furada, no lugar. Fiquei indignado: eu adorava aquela camisa.
Peguei o ônibus, fui para casa. Passei uma pomada contra queimaduras no lugar e sumi com a camisa, para que minha mãe não perguntasse como é que eu a tinha estragado.
Eu me perguntava se o Congresso Nacional valia aquela queimadura. Anos depois, quando o Congresso votou a eleição de Tancredo o que significou o fim do Regime Militar, pensei que sim, que valia a pena: ruim com o Congresso, pior sem ele. Qualquer Congresso Nacional é sempre muito melhor que nenhum Congresso Nacional - a outra opção é algum “Salvador da Pátria” governando sozinho.
Mas, o ano ainda não tinha terminado. Estávamos em Abril, e viveríamos coisa muito pior, dois meses depois.