Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

domingo, 24 de abril de 2016

AS AVENTURAS DE MURA NO PAÍS DA DITADURA EPISÓDIO 2: O DOPS E A EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA

As Aventuras de Mura no País da Ditadura


Episódio 2: O DOPS e a aula de Educação Moral e Cívica.





Um dia, eu tive que mudar de escola. A escola em que eu estudava ia apenas até a 4°série. E eu estava entrando no Ginasial, que corresponde hoje ao Fundamental Maior, a partir da 6° série.
Muitos estudantes, dependendo de sua situação de aprendizagem, faziam um ano de “Admissão”, entre a 4 série de primário e o 1 série do ginasial. Para saber se isso seria necessário, a gente fazia uma prova. Daí, minha mãe me levou para fazer a tal prova no novo colégio que haviam escolhido pra mim.
Fui lá. Fiz a prova. E acho que devo ter ido bem o suficiente para não precisar fazer o “Admissão”. Não me lembro de notas e essas coisas. Só me lembro de começar, com uniforme novo, o primeiro ano do Ginásio. “Puxa vida, estou no ginásio. Praticamente um adulto” - bom, vocês conhecem essa pretensão de maturidade que acompanha nossos progressos escolares, não é? Olhava para os meninos do primário e pensava: “pirralhos”...
Mudar de colégio é quase sempre complicado, mas, pra mim, foi ainda mais. O colégio anterior era pequeno, quase familiar, boa parte dos pais se conheciam. A quarta série, por exemplo, tinha apenas duas turmas, e com no máximo 30 alunos em sala.
O novo colégio era imenso, um prédio enorme com quatro andares e ocupava um quarteirão inteiro, com frente para a av. Bernardo Monteiro. Ainda existem em Belo Horizonte - tanto o prédio quanto o colégio. E eram umas quatro turmas de cada série, do Ginásio e do Científico (atual Ensino Médio).
Quanto vi aqueles galalaus do Científico entrando no colégio, percebi que eu voltara a ser “pirralho” muito rapidamente. A alegria de bancar o vivido e experiente, tinha sido fugaz.
Um detalhe importante: o colégio era só para homens. A maioria dos colégios em Belo Horizonte já tinha abandonado a prática de receberem somente meninos ou somente meninas e já eram mistos. Mas no colégio em que eu entrava, as turmas  “mistas” estavam previstas apenas para o ano seguinte.
Procurei a minha sala, no primeiro andar. Turma B. Entrei, tentando evitar muitos contatos com os novos colegas - sou tímido, sabe como é. Sentei-me mais ou menos no meio da sala. As carteiras eram grande e pesadas, ainda com aquelas tampas que levantavam. Tinha até lugar para colocar o tinteiro, que ninguém usava mais.
Toca a sirene (ou sinal, se preferir) e em pouco tempo tempo entra o primeiro professor: era o professor Pacheco, de matemática. Todo mundo de pé (quando o professor entrava, vc tinha que se levantar, em sinal de respeito). Ele mandou que sentássemos, organizou-se, fez a “chamada” e começou a aula
Professor Pacheco era um homem de seus 40 anos, magro, estatura mediana, um imenso bigode e uma antena de carro nas mãos, fazendo as vezes de indicador para o que escrevia no quadro. Começou a aula com uma frase que já o havia tornado célebre: “A matemática é a rainha das matérias”!
Pouco me importei com a aula. Primeiro, era matemática - chato pra caramba. Segundo, era preciso fazer um reconhecimento ampliado. Passei o tempo sacando os colegas, olhando o pátio do colégio pela enorme e neoclássica janela: lá estava a famosa piscina suspensa do colégio, lugar que eu pretendia frequentar muito. Eu gostava muito de nadar, nadava muito bem e em pouco tempo pretendia estar na equipe de natação do colégio, como já estava também na equipe de natação do Olímpico, clube que eu frequentava.
Na hora do intervalo, descemos para o pátio interno do colégio: cantina, 3 quadras de futebol de salão e um campo de futebol - de terra. Não tinha o tamanho oficial, mas era o maior campo no qual eu já tinha pisado. De repente, vi um pessoal entrando por uma grande porta, no que parecia um porão, do outro lado das quadras. A curiosidade me levou até lá: “Grêmio Estudantil” - estava escrito na placa lateral.
Mas o grêmio estudantil, onde havia várias mesas de jogos, como pingue-pongue, Totó e outros, não era acessível a todos. Só para os membros. “Nota mental: virar membro do Grêmio Estudantil”
Não seria tão simples, mas foi importante para ampliar alguns dos meus horizontes, como veremos mais à frente.
Desse primeiro ano do Ginásio, pouca coisa de importante aconteceu na minha vida. Acho que passei a maior parte do tempo no esforço de me adaptar àquele novo universo superpovoado e tão diferente do meu primário.
Fiz alguns amigos, tanto do primeiro ano quanto do segundo e terceiro anos, graças ao futebol e à natação. Conviver com os “mais velhos” e experientes é muito importante para um “pirralho” do primeiro ano: você descobre coisas fundamentais para uma vida mais feliz e segura naquele universo.
Por exemplo: descobri que todo mundo tinha medo do porteiro do colégio. Não do “disciplinário”, que era considerado muito bravo e inflexível, mas justo. O medo era do porteiro.
Era um sujeito muito alto e muito forte. Cara fechada. Ficava sentado numa mesinha, quando estávamos entrando no colégio, logo cedo, e tínhamos que entregar a ele a “caderneta”, que controlava a presença. Ele abria na página do mês e carimbava “presente”, com tinta azul. Se você não fosse à aula, no dia seguinte recebia um “ausente” em vermelho, perdia frequência - que contava para aprovação, e tinha que se explicar com seus pais, se matasse aula.
Pois os mais velhos diziam que esse sujeito, o porteiro, era “agente do DOPS” disfarçado. Então eu fui procurar saber o que era o DOPS.
O DOPS era o Departamento de Ordem Pública e Social, criado pelos governos militares, depois do golpe de 1964. Era o órgão responsável por estabelecer uma vigilância política sobre as pessoas. Quem era considerado “subversivo” ou suspeito de ser “subversivo”, ia parar no DOPS, se tivesse sorte. Alguns que não tinham “sorte” por estarem muito comprometidos com a “subversão”, despareciam. Os familiares não conseguiam encontrá-los, ninguém dizia nada sobre eles. Não se sabia se estavam presos ou não. Era uma busca dolorosa e perigosa. Muita gente tinha medo até de procurar saber onde estavam os amigos e parentes. Muitas pessoas eram exaustivamente interrogadas simplesmente por conhecerem alguém acusado de “subversão”. Estávamos sob o AI-5, pessoas acusadas de “subversão” podiam ser presas sem necessidade de mandado de prisão, sem processo formal e sem direito a .responder o processo em liberdade.
Os mais velhos, portanto diziam que o tal porteiro era “do DOPS” e isso bastava para manter distância e evitar até mesmo conversar com ele. Pra piorar, o DOPS ficava muito perto do colégio, a três ou quatro quadras, na esquina de Bernardo Monteiro com Afonso Pena. E já que desgraça pouca é bobagem, todos os dias eu tinha que passar em frente ao DOPS para pegar o ônibus de volta pra casa, na Afonso Pena.
Depois que me disseram para evitar aquele lugar, passei a descer a avenida Brasil, e não mais a Bernardo Monteiro, pra pegar o ônibus. Sabe como é: ninguém sabia exatamente o que era ser “subversivo”. Vai que eu era, né? melhor evitar dar mole pro azar.
Naquele primeiro ano, conheci também duas outras coisas interessantes. Uma, foi o Professor Elmo, de inglês - pessoa divertidíssima, que pouco ensinava de inglês, mas que criava passarinhos e adorava falar sobre eles. Passava várias aulas imitando o som de passarinhos pra nós. E dando cocadas nos mais rebeldes - sim, professores podiam dar cocadas nos alunos quando eu estava no primeiro ano do ginásio. A outra, foram as aulas de Educação Moral e Cívica. A ideia desse tipo de disciplina não era nova. Getúlio Vargas também havia tornado essa disciplina obrigatória nas escolas, durante o Estado Novo.
Nas aulas de Moral e Cívica, aprendíamos sobre como ser um bom cidadão, sobre o significado dos símbolos nacionais, como a bandeira, o hino, o brasão da República. E também sobre qual era o papel dos órgãos municipais, estaduais e federais. os alunos mais velhos diziam que nas salas havia um alto-falante pelo qual era possível a direção do colégio e os agentes do DOPS, escutarem as aulas do professor pra saber se ele não era um subversivo.
Eu aprendi que era prudente falar o menos possível na aula de Moral e Cívica. “Vivendo e aprendendo a jogar”.